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Existe Yoga sem Ishvara pranidhana? Ricardo freitas

por Ricardo Freitas


Patañjali nos ensina vários caminhos para o samadhi e em todas as opções que ele propõe, Ishvara pranidhana está presente. Ele começa propondo somente Ishvara pranidhana para chegar ao objetivo final do Yoga.

“O samadhi pode ser obtido pela entrega a Íshvara”. Yoga Sutra, 1:23.


Depois, no início do segundo capítulo, Patañjali propõe outra prática, que ele chama Kriya Yoga. Novamente, Ishvara pranidana está presente. O objetivo principal do Kriya Yoga é atenuar os kleshas (aflições) para que o samadhi seja possível.

A última proposta de Patañjali nos Sutras, e a mais conhecida pelos praticantes de Yoga é o Ashtanga Yoga, a prática em oito estágios. Nesse sistema óctuplo, Ishvara Pranidhana é o último dos niyamas, o último preceito do código de conduta.

Patañjali diz que o objetivo do Ashtanga Yoga é destruir as impurezas e adquirir a capacidade de discernir. Observe que somente na primeira opção Patañjali foi direto, dizendo que o objetivo final do Yoga pode ser obtido pela entrega a Ishvara. Será que os outros passos têm como objetivo preparar minha mente para discernir, compreender e ter o desapego necessário para que o auto conhecimento seja possível?

Parece estranho, mas quando Patañjali descreve os ganhos dos outros passos yamas, niyamas, ásana, pranayama, pratyahara, concentração e meditação ele fala em purificação, controle dos sentidos, dissipa-se o véu que encobre a luz [do conhecimento] a mente torna-se apta para a concentração. Porém, quando fala sobre Ishvara pranidhana, aponta para o objetivo final do Yoga:

“Da entrega a Ishvara surge a perfeição do samadhi.” Yoga Sutra, 2:45.

Seguindo a interpretação de Vyasa que afirma que "Yoga é samadhi", podemos concluir que Ishvara pranidhana nos leva à perfeição do Yoga. Quem ou o que é este Ishvara, então? Ishvara a causa da criação vem da raiz do sânscrito Ish que quer dizer governar, Ishvara são as leis que governam essa criação. Íshvara é ilimitado porque ele é ao mesmo tempo a causa material e a causa inteligência da criação.

Se Ishvara é ilimitado eu pertenço a Íshvara porque se eu estivesse separado dele seriamos dois, eu e ele, e isso faz de Íshvara algo limitado porque o limite dele termina onde eu começo. Ishvara pranidhana é a entrega as leis que governam o universo. Quando eu reconheço essas leis eu me entrego e com essa entrega eu percebo que não existe uma separação entre eu e o todo. Conhecer quem eu sou inclui conhecer o todo porque eu não estou separado dele e preciso reconhecer que faço parte desse todo.

Quando eu reconheço essa ordem, a reação e a resistência não têm mais espaço, não tem mais sentido, eu vejo que é ridículo ficar reagindo a alguma coisa na qual existe uma ordem. Quando você reconhece que existe uma ordem você abre mão porque sabe que não adianta ficar reagindo.

O que faz com que eu me sinta separado? A minha não aceitação do mundo, não aceitação das situações, a reação as situações, a não aceitação das minhas emoções, a não aceitação do meu corpo, a não aceitação das pessoas ao meu redor.

Analisando com mais profundidade descobrimos que todas as reações existem porque não consigo aceitar essa pessoa que sou. A entrega a ordem do universo faz com que acabe a resistência porque eu vejo que esse universo é perfeito e isso me leva a aceitação.

Se eu não gostar de um determinado resultado de uma ação, posso fazer uma nova ação, mas sempre aceitando o resultado daquela ação. Aceitação não é ficar dizendo “é assim que Deus quer” ou “seja o que Deus quiser”. Deus não quer nada, Deus não é uma pessoa que tem querer como eu, Ishavara é o conjunto das leis naturais e a inteligência que as governa. Essa apreciação de Ishvara faz com que eu tenha uma mente mais tranqüila.

O Conhecimento desse Ishvara faz com que o samadhi seja possível porque descubro que a noção de individualidade que me separa do todo é falsa. O reconhecimento dessa ordem que governa o universo coloca meu ego no lugar porque eu não fico achando que sou o responsável por tudo, eu que sou esse o cara que tudo realiza. Eu relaxo e deixo de querer ficar controlando o mundo.

Eu sei que todas as capacidades e qualidades que tenho são possibilidades dentro dessa ordem do universo e devido a essa ordem eu fui abençoado com essas capacidades por um determinado tempo. A capacidade de escrever esse texto não é minha, nesse momento eu estou sendo abençoado com essa capacidade, na verdade eu sentei varias vezes e não consegui escrever uma linha sequer e nesse momento a escrita se tornou possível.

Será que essa capacidade é verdadeiramente minha? Se essa capacidade é minha porque uma hora eu consigo e em outro momento não? Sei que a palavra Deus gera um certo incomodo para a maioria das pessoas, mas vou trocar a palavra Ishvara por Deus em partes deste texto para que possa ficar mais claro. Deus precisa estar evidente na sua vida para que exista uma entrega.

Enquanto Deus for só um conceito que está em algum lugar ou que alguém disse, dessa forma não pode existir entrega na sua vida porque eu não vejo Deus em lugar nenhum. Agora quando você percebe que o universo é Deus, as leis que governam esse universo é Deus, aquilo que traz o resultado da ação é Deus, você passa a fazer as ações da melhor forma que você é capaz e receber o resultado da ação como algo que vai lhe abençoar.

Dizer que Íshvara é um arquétipo de um yogi também traz a noção de limitação, traz a noção de uma pessoa sentada em algum lugar, como o Deus criado por algumas religiões, isso gera uma distância entre eu e Íshvara. Enquanto existir alguma distância entre eu e Íshvara fica impossível a entrega.

Como eu posso me entregar a algo que eu não conheço, não vejo, não percebo? Deus não é algo para se acreditar. Deus precisa ser conhecido. No capítulo VII da Bhagavad Gita, Arjuna pede para ver Krishna na sua forma universal. Krishna lhe responde: "Você me procura em todos os lugares como se eu estivesse sentado em algum lugar, na verdade eu estou no seu nariz na capacidade de sentir o cheiro, estou na sua boca na capacidade de sentir o gosto, estou nos seus olhos na capacidade de enxergar, estou na sua pele na capacidade do tato. Estou na sua frente em belezas diferentes e quando você tem a capacidade de perceber essas belezas, neste momento você tem um momento de fusão comigo que chamamos de samadhi porque essas belezas são algo incrível e maravilhoso.

"Samadhi é o momento em que o apreciador e apreciado desaparecem e se fundem na beleza no encantamento que é o criador, que é a própria criação. Na água eu sou o sabor, no sol eu sou a luz, nos vedas eu sou Om, no espaço eu sou a capacidade dos sons de se manifestar, e em todos os seres humanos eu sou a capacidade de pensar. Na terra eu sou o cheiro da terra molhada, no fogo eu sou o calor e em todos os seres eu sou a vida. Dos rios eu sou Ganga, das montanhas eu sou os Himalayas".

E, parafraseando Krishna, ainda poderíamos dizer: Eu sou o diferencial. Todo esse universo existe em mim, mas em cada coisa existe algo que é diferente, peculiar. Eu sou esse a mais. O universo todo tem a sua beleza mais em vários momentos você vê algo surpreendente algo encantador e ali eu estou evidenciado.

No café eu sou o cheiro, para alguém que goste de café o cheio é algo encantador. No chocolate eu sou o sabor, o sabor do chocolate é algo encantador. No pão eu sou o calor, um pão quentinho é algo divino. No açúcar eu sou a doçura. No sexo eu sou o orgasmo. Em todos os seres eu sou a razão de viver. No sol eu sou o nascer e o por do sol. No mar eu sou a imensidão. Na praia eu sou o aconchego da areia. Nos rios eu sou as cachoeiras. No sono eu sou a capacidade de dormir.

No acordar eu sou a sensação de estar vivo e respirando. Nos alimentos eu sou o sabor e a vitalidade. Na casa eu sou o abrigo e o conforto. Nesses momentos em que você reconhece Íshvara, momentaneamente você esquece da sua limitação, esquece dos seus problemas, esquece de tudo o mais e ali você completamente encantado e unido aquela beleza.

Então em cada lugar da criação eu estou de uma maneira diferente. Quando você vê, você se torna um comigo. No universo inteiro eu estou em cada coisa com uma beleza diferente esperando para ser visto. Mesmo que você queira fazer alguma coisa se eu não estiver abençoando você, você não faz absolutamente nada.

O universo todo tem a sua beleza, quando você adquirir a capacidade de me reconhecer descobrirá que tudo no universo tem algo encantador e nestes encantos eu estou evidenciado. No lixo eu sou a capacidade de decomposição. Na pessoa chata eu sou a capacidade de praticar a paciência. Na critica eu sou a capacidade de fazer silêncio. Na doença eu sou a capacidade de aprendizado. No yogi eu sou a disciplina.

Como você não me vê se eu estou evidente em todo universo e até em você. Yoga é o mais alto grau de amor. O amor se estabelece a medida que exista conhecimento de Íshvara na sua vida. Quanto mais você conhece, mais você aprecia, mais você ama. O total conhecimento é o total amor.

O único que verdadeiramente me ama é o sábio porque ele conhece o objeto do seu amor, que é o absoluto, não é diferente dele. O grande problema é que fomos condicionados a sentirmos culpados. A culpa não permite que possamos apreciar o universo. A felicidade deveria me levar a gratidão, a apreciação de Íshvara e não a culpa.

O objetivo da vida é apenas viver. A vida só existe no momento presente, então viva cada minuto como se fosse único. Prazer e dor, alegria e tristeza, belo e feio, saúde e doença tudo isso é relativo. Aprecie e confie na ordem desse universo. Somente assim podemos relaxar e viver a vida a ser vivida. Descubra que tudo que o universo oferece é algo que vai nos abençoar.


* Alguns trechos desse texto foram tirados de uma palestra ministrada por Glória Arieira em março de 2008.

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