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Você é Consciência, Realidade, Amor - Pedro Kupfer
Você é Consciência, Realidade, Amor
Por Pedro Kupfer
Consciência, realidade e amor. Essas são as únicas três palavras que podem ser usadas para definir o Ser. Em sânscrito, dizemos satchitananda. A sexta parte (prapathaka) da Chandogya Upanishad, um belo texto antigo do Yoga, nos ensina sobre a natureza do Ser, partindo de uma situação peculiar: o grande sábio Uddalaka Aruni envia seu filho Svetaketu, então com doze anos de idade, para estudar com um renomado mestre, com quem vive durante mais doze anos.
Ao voltar, o jovem yogi, que memorizou os Vedas e está intoxicado com informação espiritual, age e fala como se já soubesse tudo sobre tudo. Incomodado com a arrogância do moço, Uddalaka resolve lhe ensinar um pouco de humildade e compaixão, pois sabe que, sem elas, o ensinamento de nada vale.
Este pai, diferentemente de muitos outros, está mais interessado em que seu filho compreenda a razão da própria existência do que em que ele se torne famoso pelo conhecimento intelectual ou que se centre em buscar prestígio, fama ou poder. O diálogo entre eles é dos mais belos, profundos e reveladores das Upanishads, antigos tratados filosóficos indianos.
Para instruir seu filho, Uddalaka expõe, através de belas parábolas, como o Ser está presente em tudo o que vive: humanos, animais e plantas. Ele ensina ao menino que, o mesmo tempo em que o Ser está em tudo e em todos, ele não é limitado nem pelo tempo nem pelo espaço. Selecionamos aqui, para o amigo leitor, algumas passagens deste longo e instrutivo diálogo.
Barro e ouro.
Para iniciar a conversação, Uddalaka perguntou ao menino: “Sábio e instruído filho meu, durante seus estudos, chegou a perguntar por Aquilo que não pode ser ouvido, mas graças ao que a audição é possível? O que é Aquilo que não pode ser visto, mas que torna possível a visão? O que é Aquilo que não pode ser conhecido, mas torna possível o conhecimento?”
Pasmo e indeciso, Svetaketu permaneceu em silêncio. O pai respondeu-lhe: “Conhecendo um único fragmento de argila, todos os objetos feitos de argila podem ser conhecidos. Conhecendo uma única pepita de ouro, todos os objetos feitos de ouro tornam-se conhecidos. A diferença entre dois objetos feitos de ouro está apenas nos nomes e formas. Em verdade, todas as jóias são apenas ouro, assim como todos os potes são feitos de argila. Conhecendo o ferro através de uma tesoura, conhece-se tudo o que é feito de ferro. Essa é a instrução. Consegue me dizer, querido filho, o que é Aquilo que, sendo conhecido, permite o conhecimento de tudo?”
“Infelizmente, meus mestres não me instruíram a esse respeito, pai. Você pode me ensinar, por favor?”
“Certamente, filho. Toda a Criação é apenas Realidade. Essa Realidade é a Consciência. Essa Consciência é existência absoluta. O Ser é aquele Incomparável. Dele surgiu o Cosmos, e então ele entrou em cada ser vivente e objeto inanimado. Não existe nada que não derive da Consciência. Ela é a essência de tudo. Ela é a verdade, o Ser Puro. E você, Svetaketu, é Isso”.
“Pai, me fale mais sobre este Ser”.
“O que acontece no sono?”, continua Uddalaka: “Quando um homem dorme profundamente, ele permanece unido ao Ser que é (embora de maneira inconsciente). Ao acordar, dele dizem: “dormiu bem”, pois se recolheu no Ser que é.
“Assim como um papagaio amarrado no poleiro voa desesperadamente em todas as direções buscando um lugar tranqüilo e depois descansa no lugar onde está preso, da mesma maneira, a mente, cansada de vaguear aleatoriamente, sem encontrar repouso em lugar algum, se estabelece e acalma no alento vital. É assim, meu filho, porque a mente inquieta está vinculada ao alento vital (prana)”.
O pai continua instruindo Svetaketu: “As abelhas colhem o néctar de infindáveis flores na mata para fabricar seu mel. Uma vez que o mel está feito, as diferentes gotas não dizem “eu vim daquela macieira, eu vim daquela roseira”. Da mesma forma, embora de maneira inconsciente, todos os diferentes seres vivos são o Ser. Nada existe que não derive do Ser. Ele é a essência de tudo. Ele é a verdade, a Pura Consciência. E você, Svetaketu, é Isso”.
Semente, árvore, fruto.
O jovem Svetaketu faz a seguinte pergunta ao seu pai: “Como é que a Criação inteira pôde surgir do Ser, se este é tão sutil e não tem nome nem forma?”
“Filho, traga para mim um fruto daquela figueira”.
“Aqui está”.
“Agora, parta o figo ao meio”.
“Feito, pai”.
“O que você vê?”
“Uma quantidade de sementes muito pequenas, quase infinitesimais”.
“Corte uma ao meio, então.”
“Fiz, pai, com dificuldade”.
“O que você vê dentro?”
“Nada, pai”.
“Filho meu, aquela essência sutil que não pode ser vista é o âmago a partir do qual esta imensa figueira cresce e vive. Confie nas minhas palavras, meu menino: aquilo que é a essência sutil de tudo o que existe é o puro Brahman, que é consciência, realidade, amor. Esse é o Ser, e Isso é o que você é”.
“Por favor, ensine-me mais, pai”.
Água e sal.
“Meu filho, coloque esta pedra de sal num pote com água. Voltamos a conversar amanhã cedo”. O menino faz o que seu pai pede.
No dia seguinte, o pai diz: “Traga aquele sal que você colocou na água ontem”.
“Não posso pai, ele está dissolvido”.
“Muito bem, então, prove a água. Como está?”
“Salgada, pai, muito salgada”.
“Prove água do centro do pote. Como está?”
“Salgada, pai, muito salgada”.
“Prove água da outra beira. Como está?”
“Salgada, pai, muito salgada”.
“Então, vá jogar essa água lá fora e venha para conversarmos mais”. Svetaketu assim faz.
“Você jogou a água na terra, mas o sal ainda existe. Da mesma maneira, no nosso corpo físico, não podemos enxergar a Consciência-realidade-amor, embora ela esteja sempre presente. Essa é a essência sutil que está presente em tudo e em todos. Essa Consciência é Brahman, o Ser, e você é Isso”.
“Por favor, ensine-me mais, pai”.
“Você é Isso!”
Tat tvam asi significa em sânscrito “você é Isso”. Esta frase, proferida repetidas vezes ao longo da conversação entre pai e filho, é conhecida como um dos quatro mahavakyas, as “grandes afirmações” sobre o Ser. Olhando com cuidado, poderemos perceber que esta “grande afirmação” é a base que sustenta toda a vida ética. Se de fato somos todos idênticos, é preciso tratar os demais da mesma maneira que gostamos de tratar a nós mesmos. Assim, podemos descartar até mesmo sentimentos como a piedade, uma vez que não tratamos piedosamente o outro por causa do sofrimento que nos produz ver a sua dor, mas porque, simplesmente, o outro é idêntico a nós mesmos.
Descartamos assim a condescendência, a troca de favores, e até mesmo o altruísmo, e ficamos com o amor, a compaixão e a humildade, reconhecendo no outro o mesmo Ser que anima a gente. Você é Isso. Você é Ser. Vivemos para Ser. Estamos aqui para Ser. As implicações dessa afirmação são enormes e podem transformar profundamente a visão que temos do nosso papel no mundo. Conta a história que o jovem Svetaketu coloca posteriormente em prática o ensinamento recebido de seu pai, tornando-se um dos maiores sábios que a tradição do Yoga lembra. Namaste!
Publicado originalmente na revista Prana Yoga Journal: www.eyoga.com.br.
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