Textos
O Ramayama numa Casca de Noz
Por Pedro Kupfer
O Ramayana é um dos grandes épicos da literatura asiática. Indianos, indonésios, tailandeses e vietnamitas se emocionam e inspiram desde sempre com as aventuras narradas nos mais de 24.000 versos dos sete livros deste belo texto, que conta a história de Rama. Rama é uma encarnação do deus da preservação, Vishnu, que desce periodicamente à terra para salvaguardar o dharma. O texto é uma espécie de rocambole que mistura, na mesma obra, a temática da Bíblia, Romeo e Julieta, e Star Wars.
O nome Ramayana significa “A Jornada de Rama”. Este épico, baseado em fatos históricos, foi narrado pelo sábio Valmiki e transcrito ao alfabeto devanagari entre os séculos iv e iii a.C. Narra o ordálio de Rama para resgatar sua esposa Sita das mãos do demônio Ravana. Sita e Rama são o paradigma perfeito dos amantes que superam todas as dificuldades para que o amor e o bem triunfem. Eis a história deles, de maneira bem resumida.
Para se ter uma ideia do que este texto significa no subcontinente indiano e no sudeste asiático, basta lembrar que as enormes paredes do palácio real de Bangkok, na Tailândia são pintadas de fora a fora com afrescos que contam os diferentes episódios da saga. Vale lembrar também que existem inúmeros filmes que contam esta história, bem como parques temáticos centrados nela, e que há inúmeras encenações, com danças e dramatizações do épico em todos esses países. O épico explora os grandes sentimentos e dramas da existência humana e sua relação com o dharma, o sistema dos valores universais.
A história
Nossa história começa com o nascimento dos quatro filhos do rei Dasharatha, da casa de Raghu, a dinastia solar do norte da Índia. Ele é o soberano de Kosala, cuja capital é a cidade de Ayodhya. Dasharatha tem três esposas: Kausalya, Kaikeyi e Sumitra. Da primeira nasce Rama, Bharata da segunda, e os gêmeos Lakshman e Shatrughna de Sumitra, a mais jovem. Rama, o primogênito, é designado seu sucessor. Aos 16 anos de idade, e acompanhado por seu irmão Lakshman, ele derrota os demônios a pedido do yogi Vishvamitra, que instrui ambos na ivda espiritual, bem como no manejo de certas armas mágicas que lhes serão de imensa utilidade no futuro.
Mais ou menos na mesma época em que nascem estes garotos, o rei-yogi Janaka, governante de Mithila, encontra uma linda menina enterrada na gleba, na ocasião do ritual anual de plantio. Filha da Mãe-Terra, ela é adotada pelo rei e chamada de Sita, palava sânscrita que significa menina bonita, mas também significa sulco. Quando Sita chega à idade de casar, o pai promove um svayambara, um torneio no qual ela irá escolher seu noivo dentre os pretendentes que comparecerem e completarem certas provas que demonstrem sua força, inteligência e destreza. Rama e Lakshman comparecem acompanhados pelo sábio Vishvamitra e Rama vence o torneio, quebrando o arco que Shiva havia presenteado ao rei Janaka, que os outros pretendentes nem sequer haviam conseguido levantar. Rama casa com Sita e todos voltam para a cidade de Ayodhya.
Após 12 anos de feliz casamento, o rei Dasharatha, que nessa época já está sentindo o peso dos anos e as batalhas travadas no passado, começa a perceber sinais de mal-agouro no céu e resolve acelerar o processo da transferência do poder para o primogênito, anunciando à assembléia de Kosala que irá abdicar do trono em favor do príncipe Rama. Porém, na véspera da coroação, a rainha Kaikeyi, cujos ciúmes são alimentados por Manthara, uma aia do palácio que odeia em silêncio Rama, exige do rei que Bharata, seu próprio filho, seja coroado e que Rama seja exilado na floresta por 14 anos.
O rei, com o coração partido, cede aos desejos de Kaikeyi, a quem devia a vida e havia dado a palavra de que faria qualquer coisa para lhe retribuir o gesto. Rama aceita a decisão do pai e, acompanhado por Sita e Lakshman, parte para a floresta Chitrakut. Pouco depois da partida dos três, o rei falece de pena. O principe Bharata, por sua vez, se recusa a aceitar o trono e permanece administrando o reino na qualidade de regente, aguardando pelo retorno do seu querido irmão. Ao invés de ocupar o trono, coloca nele as sandálias de Rama e governa em seu nome. Rama, fiel à palavra empenhada ao pai, decide cumprir o prazo de exílio, mesmo ao ser chamado por Bharata. Um detalhe curioso: o país que nós conhecemos como Índia, chama-se Bharata em sânscrito, por causa desta personagem da nossa história.
Rama, Sita e Lakshman constroem uma pequena cabana na floresta e levam uma vida tranquila e simples, alimentando-se daquilo que a natureza lhes fornece. Em suas andanças pelo mato, uma demônia chamada Surpanaka, irmã de Ravana, soberano da ilha de Lanka, tenta seduzir sem sucesso os irmãos e frustrada tenta, também sem sucesso, matar Sita. Lakshman corta com suas flechas o nariz e as orelhas da demônia. Sua família, humilhada, tenta matar ambos os irmãos, mas é dizimada por eles.
Surpanaka, sedenta de vingança, procura Ravana, que decide destruir Rama e sequestrar a princesa, cuja beleza exerce sobre ele imensa atração. Para essa tarefa, é ajudado pelo demônio Maricha, que assume a forma de um antílope dourado e se mostra para a princesa. Sita, fascinada pelo animal, pede a Rama que o capture. Rama corre atrás do antílope enquanto Lakshman permanece cuidando da sua cunhada. Um tempo depois, Sita ouve gritos de Rama pedindo sua ajuda e pede a Lakshman que socorra seu irmão. Lakshman, preocupado, traça um círculo mágico de proteção em torno da cabana e diz para Sita não sair dele. Ravana aparece disfarçado de monje mendicante e pede alimento à princesa. Ela, imprudentemente, convida o demônio o entrar no circulo mágico e é imediatamente raptada por ele, que a arrasta pelos ares. Em sua fuga, Ravana derrota e fere mortalmente o rei dos abutres, Jatayu, irmão de Garuda, o deus-águia, que serve como montaria para Vishnu.
Enquanto isso, os dois irmãos capturam o antílope e percebem, tarde demais, a artimanha em que caíram. Ao voltarem para a cabana, encontram o agonizante Jatayu, de quem ouvem sobre o rapto da princesa. Quando os irmãos, desesperados de dor, procuram pistas dela, encontram uma monja chamada Shabari que os direciona para os poderosos macacos Sugriva e Hanuman. Enquanto isso, ao chegar à ilha de Lanka, Sita é mantida prisioneira no Ashokavana, um jardim interior nos fundos do palácio de Ravana. O demônio tenta seduzir a princesa, de quem recebe sucessivas negativas.
Na cidade dos macacos, Kishkindha, Rama e Lakshman travam contato com o rei Sugriva, que fora destronado por Vali. Em troca de ajuda para encontrar e resgatar Sita, Rama derrota Vali em batalha e ganha a amizade de Hanuman, um macaco extremamente poderoso e inteligente. Uma vez recuperado o trono, Sugriva envia emissários em todas as direções em busca da princesa. Hanuman, levando o anel de Rama, vai para o sul, onde ouve do abutre Sampati que Sita permanece cativa na ilha de Lanka.
De posse dessa informação, Hanuman assume uma forma gigantesca e, de um único salto, atravessa o mar. Uma vez na ilha, assume a forma de um pequeno mico e procura por sinais da princesa em todos os lugares. Encontrando-a na floresta escondida atrás do palácio, dirige-se a ela desde uma arvore, falando em sânscrito. Ao ouvi-lo, a princesa pensa ser mais um truque de Ravana para seduzi-la, mas pecebe que o esse mico conhece detalhes da vida de Rama que o demônio jamais poderia conhecer. Quando Hanuman lhe mostra o anel de casamento e lhe dá a notícia de que brevemente será resgatada, ela redobra suas esperanças.
Hanuman, então, assume a sua forma gigante e semeia a destruição e o caos no palácio e na cidade, incendiando tudo à sua volta e anunciando a Ravana sua iminente queda. Porém, o demônio, cego, não lhe dá ouvidos. O poderoso macaco retorna com as boas novas para o continente, onde um exercito de ursos e macacos se prepara para invadir a ilha. A eles se une Vibhishana, o irmão do próprio Ravana, que percebe a tremenda equivocação que este cometeu ao sequestrar a princesa. Ao chegar o exercito à beira do mar meridional, é construída uma ponte até a ilha, com a ajuda de golfinhos e tartarugas. Rama e Lakshman, à frente do exército, invadem Lanka e uma terrível batalha é travada entre eles e os demônios, que conclui com a derrota e morte de Ravana. Ao ser resgatada, Sita passa pelo teste do fogo, agnipariksha, para provar sua pureza, jogando-se numa enorme pira. Agni, o deus do fogo, eleva-se, carregando Sita, ilesa para longe das chamas. Findo o período do exílio, os príncipes retornam felizes, junto com Lakshman e Hanuman para a cidade de Ayodhya, onde a coroação de Rama finalmente acontece.
Significado oculto do épico
A mitologia tem, dentro do hinduísmo, a mesma função que a história na nossa cultura. É através das epopéias destes deuses, heróis, yogis e sábios que o povo indiano encontra inspiração para viver e superar as dificuldades e desafios que a vida possa lhes colocar. Esta história do Ramayana é uma lição muito profunda de Yoga, cheia de magia e espiritualidade. Rama aparece como uma personagem histórica da dinastia solar Kosala, que é mencionada nos Puranas. Ele foi um rei muito justo e querido. Conhecido pela coragem, compaixão e sabedoria, encarna o paradigma da fidelidade. Seu nome significa aquele que traz graça, luz e paz.
Uma análise profunda deste épico nos revela sua visão yogika. As diferentes personagens simbolizam qualidades ou defeitos que facilitan ou obstaculizam o caminho para a liberdade e a plenitude. Rama é o ser individual, jivatma, que está desesperadamente buscando o Ser Ilimitado, Paramatma, representado por Sita, a princesa cativa. A princesa foi sequestrada pelo demônio Ravana, que representa a ignorância, o egoísmo e o apego. As dez cabeças do demônio simbolizam os cinco órgãos de ação e os cinco sentidos que controlam a existência o homem escravo de seus próprios condicionamentos.
Sita é levada para o “mundo inferior” (Lanka) e mantida presa na floresta ashokavana, que representa a experiência do mundo sensorial. Lá, ela reza pela chegada do príncipe Rama e mantém sua mente, sua força interior e sua razão concentradas no amado. Não obstante, Rama não consegue resgatar a princesa sem a ajuda de Hanuman, o deus-macaco, que é a própria encarnação da força vital, o prana. Depois que este indica onde está a princesa Rama pode organizar e conduz seu exército para a guerra contra as forças de Ravana.
No final do épico, o príncipe guerreiro consegue, após intensa batalha, vencer o demônio e resgatar a sua amada, voltando para o reino de Ayodhya. Assim, estabelece-se a união com a alma universal, Paramatma, que é em última análise, a meta do Yoga, através da “derrota” do ego, ou seja, de cultivar a não-identificação com seus conteúdos, desejos, aversões e vontades.
Um corpo sutil forte e saudável é importante para se ter sucesso no caminho do Yoga. Porém, cabe lembrar que a força do yogi não deriva de nenhum tipo de poder pessoal, mas da entrega a Ishvara, do pranidhana. Na mitologia hindu, essa forma de prana superior é simbolizada pelo deus-mono, Hanuman, filho de Vayu, o deus do vento. Hanuman dedica sua existência Ishvara, personificado em Sita e Rama.
Ele é tão poderoso que domina os siddhis laghima e mahima, as capacidades de tornar-se infinitamente pequeno ou infinitamente grande, é capaz de derrotar os mais poderosos inimigos e realiza proezas milagrosas. Com toda sua vitalidade, Hanuman é a encarnação da boa vontade, da curiosidade e da força física, que subordina todos seus poderes e sentidos a uma aspiração mais elevada.
Na batalha, Rama cortou sucessivamente as cabeças do demônio, mas por cada uma que cortava, mais uma aparecia. Se quisermos derrotar os nossos “demônios interiores”, precisaremos mirar no coração deles. As cabeças representam os desejos. Elas surgem umas das outras. Não se mata um demônio desse jeito. É preciso ir ao coração. Similarmente, não podemos acabar com os desejos tentando realizá-los ou reprimi-los. Precisamos mudar a maneira em que nos relacionamos com eles. Rama arremessou brahmastra, a arma de Brahma, e acertou diretamente o coração do demônio. Ravana morreu em moksha, em estado de iluminação.
A raiz da ditadura do ego, se cabe falarmos em ditadura neste contexto, é a ignorância, avidya. Quando a ignorância desaparece, o ego passa a ocupar o lugar que a ele corresponde. Isso acontece através de um processo de maturidade e crescimento interior que nos conduz ao estado de moksha, a libertação. Então, a essência mais íntima do ser (adhyatma), se revela e, como esclarece Patañjali (Yoga Sutra, I:3), “repousa em sua própria natureza (svarupa)”.
Quem consegue entrar em contato primeiramente com Sita é Hanuman, que simboliza a força vital. Somente depois, o príncipe Rama pôde resgatar sua amada. Isso explica porquê, nas práticas de Yoga, é preciso fazer primeiramente as técnicas mais densas, como as purificações, asana e pranayama e, somente depois, passar para as mais sutis, como a meditação e os mantras. Namaste!
Publicado originalmente na revista Prana Yoga Journal: www.eyoga.com.br
Texto retirado do site:
www.yoga.pro.br