Textos

Aquele que Vê e o que é Visto: Swami Dayananda Saraswati

À luz das Escrituras pode-se perceber que não existe diferença real entre os diversos objetos. Mesmo ao nível empírico da realidade, o questionamento reduz substâncias que aparentemente constituem cada objeto a agrupamento de partículas sub-atômicas. A Física moderna, de seu ponto de vista, confirma a falta de substancialidade, por encontrar falta de “verdadeira”diferença em objetos aparentemente “reais”. O questionamento baseado na Sruti (que define o real como aquilo que não pode ser negado) revela cada objeto conhecido ou a ser conhecido como sendo irreal por ser sujeito ao tempo, limitado pelo espaço e, na realidade, apenas um nome e uma forma reduzível a alguma outra substância aparente ou substâncias, que por sua vez são apenas nomes e formas reduzíveis novamente a suas substâncias. Nenhum objeto conhecido ou conhecível pode ser reduzido a uma substância conhecida ou conhecível incapaz de redução ulterior. Um objeto conhecível, qualquer coisa que possa ser objetificada, desafia uma definição final - não tem realidade própria.Objetos são apenas nomes e formas, processos agregados em constante mudança, limitados pelo tempo e pelo espaço, dependentes, para suas aparentes realidades, de um substrato real, sem forma, sem limites, eterno - Brahma.

Assim, quando eu apanho uma pedra sólida no leito de um córrego e a seguro na palma da minha mão, posso apreciar a aparente diferença percebida por mim entre esse objeto sólido e polido e a água fluida e ondulada que se precipitava sobre ela. Porém, ao mesmo tempo em que eu aprecio a aparente diferença entre pedra e água, posso também apreciar e saber com segurança o fato da não-diferença desses dois objetos, esses dois objetos conhecidos, cada qual sendo apenas nome e forma, limitado, redutível, negável, com suas diferenças - sua dualidade - desaparecendo na realidade única, não-dual de Brahma.

Embora eu veja não-diferença entre os objetos que constituem esse mundo, sinto que é mais difícil ver a ausência de diferenças entre mim e a criação: entre o “eu”, o que vê, olhando para a pedra, o que é visto.Eu cuja pele, o sentido de tocar, me separa do mundo, vejo a pedra do lado de fora, enquanto eu estou dentro; minha pele é o muro, meus sentidos, as janelas através das quais vejo o exterior e a minha mente, o dono da casa que avalia o que é visto.

Essa conclusão condicionada de interno e externo, entre aquele que vê e o que é visto, pode ser um problema, porém, como todas as falsas conclusões, suscita um questionamento. Idam (isto) ou drsya(o visto) indica qualquer coisa que é conhecida ou que seja objetificável. Minha pele é parte de assim como limite para um corpo físico e suas funções. Esse corpo é algo conhecido, drsya, alguma coisa objetificável. Associada a esse corpo e suas funções há uma certa quantidade de pensamentos, incluindo percepções dos sentidos, decisões, julgamentos, memórias, gostos e aversões e o senso de ser o agente(“sou eu aquele que faz, que usufrui, que conhece, que possui”). Cada pensamento é conhecido - é objetificável, é drsya, é algo conhecido. Nenhum pensamento ou grupo de pensamentos é não objetificável. Pensamentos, incluindo o pensamento básico de eu-agente da ação, são coisas conhecidas

Passo a passo, o questionamento pode verificar que não existe diferença entre o “eu”,o que vê, e a pedra que é o visto - nenhum espaço para se fazer uma divisão entre o que vê e o que é visto. Tudo o que é conhecido por mim através dos meus sentidos ou inferido através de percepção de dados é drsya . Todos os objetos,os eventos, este corpo, mente, memória, o sentido de agente da ação e o intervalo medindo o tempo, bem como acomodando o espaço, todos são conhecidos ou conhecíveis, são drsya. Drsya não estabelece diferenças. Nenhuma diferença real pode ser estabelecida entre aquele que vê e o que é visto. A única diferença entre objetos conhecidos é a aparente diferença dos sempre mutáveis nomes e formas projetados sobre a realidade imutável e sem forma de Brahma . Eu, como o que vê, não tenho uma realidade maior do que a pedra que é vista. Cada um de nós tem apenas como realidade Brahma , o não-dual e sem-forma.

Assim, as diferenças entre o que vê e o que é visto não têm uma realidade independente: elas são apenas aparentes, sendo negadas pelo conhecimento, adquirido através do questionamento a respeito da realidade dessas diferenças.Tente encontrar uma linha divisória entre aquele que vê e o que é visto. Toda vez que você se coloca numa posição onde pensa que o que vê está de um lado e o que é visto, do outro, ambos os lados passam a ser o visto. A única coisa que você pode objetificar é drsya . No entanto, visto experiencialmente do ponto de vista de seus níveis de realidade comum, as diferenças sujeito/objeto parecem muito reais. O conhecimento aham idam sarvam - “eu sou tudo isso”(ou “essa pedra e eu somos um”) não é uma conclusão a ser alcançada pela experiência.

Quando sujeito e objeto participam do mesmo grau de realidade, a diferença experimentada parece real. Essa diferença experienciada não é eliminada como experiência, mas é negada como real através do conhecimento.

O simples raciocínio - questionamento lógico - sacode a realidade da diferença. Sruti, como meio de conhecimento, destrói a diferença e revela a Unidade.

O sonho, dentro de seu próprio nível de realidade, é um bom exemplo de “realidade” das diferenças percebidas. Se eu sonho com o fogo que estou tentando apagar jogando água, então essa água sonhada que extingue o fogo sonhado é tão real quanto o fogo - e o fogo, tão real quanto a água. E eu, o sonhado combatente do fogo, sou tão real quanto a água e o fogo mas não sou mais real do que o fogo e a água. Desfrutando do mesmo grau de realidade, o que combate o fogo, o fogo e a água todos parecem reais, todos parecem diferentes, embora todos se dissolvam como irreais. Ao acordar, eu não vou encontrar cinzas no chão do meu quarto. Sonhador e sonho desapareceram. O sonhador não tem realidade maior que o sonho. Ambos desaparecem. Nada sobra. Apenas eu permaneço.

A realidade do “eu”é a ilimitada purnam (completude), eu, como o que vê a pedra, sou apenas uma aparência não mais real do que a pedra que eu vejo. Na realidade, eu sou o Ilimitado Único, uma Consciência sempre presente, não-dual, sem limites - purnam . Sujeito e objeto não são nada além de projeções passageiras superpostas sobre mim: elas nada acrescentam nem tomam de mim. Eu, distinto de qualquer aparência, sou Aquela realidade imutável, inegável, sem forma - purnam - na qual todas as aparências se dissolvem.

Eu sou purnam, completude, um oceano que nada perturba. Nada me limita. Eu sou ilimitado. Ondas e ondulações aparecem em minha superfície, mas são apenas minhas formas brevemente manifestas. Elas não me perturbam nem limitam. Elas são a minha glória, minha plenitude manifesta na forma de ondas e ondulações. Ondas e ondulações podem parecer muitas e diferentes mas eu sei que são apenas aparências; elas não impõem nenhuma limitação a mim - sua agitação é apenas a minha plenitude manifestada como agitação, elas são a minha glória que se dissolve em mim. Em mim, o oceano pleno, tudo se dissolve: Eu, purnam , completude, permaneço único.



Tradução de Carmen Pinheiro

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