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Dharma sem Drama - Por Pedro Kupfer

Dharma sem drama
Pedro Kupfer

Ouvimos muito falar em dharma. Usamos esta palavra com alguma frequência nas conversações sobre Yoga, mas às vezes, percebo que o que alguns compreendem como sendo dharma é diferente do que outros pensam ou falam. Assim, decidi escrever este texto como uma maneira de contribuir para a compreensão desse importante conceito, à luz do que aprendi com meu mestre, Swami Dayananda. A palavra dharma deriva da raiz dhr, que quer dizer “manter unido”. Então, dharma tem o sentido de preservar, de manter a coesão entre as pessoas e as coisas. Dentre outros significados, o termo aponta para as ideias de ordem, lei, filosofia, bem comum, ética, religião e conduta.

Há duas dimensões distintas de dharma: a universal e a pessoal. No primeiro sentido, dharma é a força de coesão que sustenta a criação, manifestada na forma das leis naturais: a da gravidade, a da preservação da massa e as demais e ainda, na forma das leis humanas que regem a sociedade e possibilitam uma convivência harmoniosa entre as pessoas. Se formos pensar nessa dimensão do dharma universal, poderíamos defini-lo como não fazer aos demais aquilo que não gostaríamos que fizessem conosco. O segundo sentido desta palavra, está vinculado com a conduta individual e funciona como uma espécie de bússola para pautar as nossas ações. Esse tipo de dharma é chamado svadharma, seu próprio dever.

Meu dever.

Algumas pessoas, ouvindo por primeira vez o ensinamento da Bhagavad Gita, que acontece à beira de um campo de batalha, tendem a pensar que o dharma pessoal seja algo ao mesmo tempo grandioso e terrível como o destino do príncipe Arjuna, que se vê na contingência de matar seus próprios parentes e amigos. Porém, o svadharma não é algum destino maravilhoso ou fado funesto que possa estar nos aguardando ao virar a próxima esquina.

Na Bhagavad Gita (III:35), o deus Vishnu, encarnado como Krishna, instrui Arjuna sobre o próprio dharma: “Mais vale cumprir o próprio dharma, ainda que de forma imperfeita, do que cumprir de maneira perfeita o dever de outrem. É melhor sucumbir desempenhando seu próprio dever. É perigoso cumprir deveres alheios”. Esta frase, dita no momento em que inicia uma grande guerra onde muitos irão morrer, soa de fato como algo heróico e aterrorizante. Assim, naturalmente, podemos pensar que talvez svadharma seja isso: um destino grandioso que precisamos encontrar, ou um sentido oculto para a nossa vida que devemos achar antes que seja tarde demais, e que talvez seja perigoso.

As palavras de Krishna devem ser interpretadas dentro do contexto em que foram ditas. De fato, o dever de Arjuna como guerreiro e comandante de um exército é lutar e se for preciso morrer, realizando seu dharma. Não obstante, se formos considerar que a imensa maioria de nós não tem esse destino glorioso e assustador, poderíamos definir o svadharma noutros termos, muito mais humildes e próximos do nosso cotidiano, porém que a aplicam tanto ao caso de Arjuna quanto ao nosso: svadharma é fazer seu próprio dever, fazer aquilo que deve ser feito. Nada mais. Nada menos. OK, pode pensar o amigo leitor, mas o que isso exatamente significa?

Qual é meu dever?

Quando Krishna, no papel do professor ideal, diz para Arjuna que é melhor falhar realizando seu próprio dever do que acertar cumprindo o dever dos demais, ele quer dizer que é desejável usar da maneira mais adequada o livre arbítrio do qual todos nós, enquanto humanos, somos dotados. Noutras palavras, não devemos escolher dominados pelos nossos gostos ou aversões, mas pela visão daquilo que é certo ou errado. O certo e o errado são muito fáceis de se definir: certo é aquilo que nós gostaríamos que os demais fizessem conosco. Errado é aquilo que não queremos que os outros nos façam.

Estas afirmações nos levam para a seguinte reflexão: enquanto pessoas maduras, nós só devemos escolher o que é certo, quando colocados numa disjuntiva. Porém, na dinâmica da vida, onde as nuanças do cinza são infinitamente mais variadas que o negro desta tinta impressa sobre o branco do papel da revista, isto deve ser corretamente compreendido. Às vezes, aquilo de que gostamos coincide exatamente com aquilo que é correto e aquilo de que não gostamos se encaixa com o que é errado. Numa situação dessas, não precisamos nem pensar, apenas agimos de maneira espontânea e pronto: já estamos realizando nosso svadharma. No entanto, noutros momentos essa situação não se apresenta de maneira tão clara assim e é preciso agir de maneira deliberada.

Ações espontâneas, ações deliberadas.

Uma vez, estávamos numa estrada em Bali, voltando para casa muito tarde na noite, depois de nos despedir de um amigo que voltava para o Brasil. Quando paramos o carro num cruzamento importante, testemunhamos um acidente espetacular: duas motos bateram em alta velocidade e três pessoas saíram patinando pelo asfalto por muitos metros. Depois do barulho e as faíscas, apenas silêncio e três corpos no asfalto no meio da noite. Estávamos cansados, era tarde, não havia ninguém olhando, e nós poderíamos simplesmente ter seguido em frente. Mas, nesse caso, o nosso desejo não coincidia com aquilo que era certo: se fossem nossos corpos estendidos na estrada e não os daquelas pessoas, gostaríamos que os outros seguissem indiferentemente seu próprio caminho?

Não havia opção possível. Essa era a hora da ação deliberada: contrariando o desejo dos nossos corpos cansados por chegar logo na cama, paramos o carro no meio da estrada, de maneira que os poucos carros que passavam não atropelassem os acidentados e começamos, a examinar os corpos com cuidado. Os três, aliás, muito jovens, tinham um forte cheiro de álcool e, para nossa surpresa, estavam quase inteiros: alguns arranhões profundos, um osso quebrado aqui e acolá, mas nada de crânios esmagados, membros decepados ou fígados arrancados. Incrivelmente, os três dormiam profundamente. Estavam muito bêbados, mas tiveram aquela sorte louca dos que estão totalmente entregues às circunstâncias.

Agimos desde a certeza de que gostaríamos de ter a solidariedade dos demais, se a precisássemos numa emergência como essa. Com a ajuda de um policial que apareceu um tempo depois numa motinho (o que foi bom, pois dividimos a responsabilidade com ele, que assumiu as decisões), carregamos os três no porta-malas e o assento de trás do nosso jipe alugado e fomos para um hospital. O caminho foi longo. A Ângela estava enjoada com o cheiro do sangue e álcool e começou a passar mal. Eu estava com um nó na boca do estômago, por causa da tensão e o receio de ter feito algo errado, pois sabia perfeitamente que não devemos mexer em corpos de acidentados.

Mas havíamos seguido as instruções do policial para transportar os corpos, já que a situação era crítica. Conhecendo bem a Indonésia, tanto o policial quanto nós sabíamos que, se deixássemos os garotos deitados no asfalto do jeito que estavam, seriam atropelados antes da chegada de uma ambulância, o que poderia demorar horas, ou nem sequer acontecer. Eu também pensava se, na chegada no hospital, as pessoas não iriam nos acusar de ter atropelado os jovens, e que isso poderia complicar muito a nossa situação, apesar da boa intenção com que tínhamos agido. Mas nada disso aconteceu: na chegada, um enfermeiro que mais parecia um lutador de sumô mal-encarado, jogou descuidadamente os garotões em três macas e nos dispensou sem muita cerimônia. Fomos dormir tranquilos e aliviados.

Por que dharma?

Qual é meu ganho, se seguir o dharma? Qual é o efeito? Por que deveríamos agir dentro dele? Por algo muito especial: quando eu sei o que devo fazer, quando conheço meu papel na sociedade, fico tranquilo. Quando consigo discernir o certo do errado, e escolher deliberadamente o que é certo, mesmo a pesar do meu próprio prazer ou conforto, me fortaleço imensamente. Quando minhas ações estão alinhadas com o bem comum, fico em paz pois encontro o meu lugar na ordem das coisas. Cabe lembrar que a palavra dharma significa, dentre outras coisas, ordem, harmonia.

Svadharma nos relacionamentos.

Esses deveres que chamamos dharma, por sua vez, constituem direitos, quando olhados desde o outro lado. Se eu faço aquilo que é certo, o que é certo é meu dharma, meu dever. Do outro lado dessa afirmação há outra pessoa ou outras pessoas: o meu cônjuge, a minha família ou a sociedade. Ou seja, o meu dever em relação ao meu cônjuge se torna o direito dele ou dela. O meu dever em relação à minha família é o direito dela. O meu dever para com a sociedade é o direito dela.

O direito do cidadão é (ou deveria ser) garantido pelo Estado, que representa (ou deveria representar) o dever da sociedade em relação ao indivíduo. Muitas vezes gritamos alto para reivindicar nossos direitos, mas esquecemos de ter o mesmo zelo na hora de cumprir os nossos deveres. Direitos e deveres relacionais, familiares e sociais são relativos, e dependem de tempo, lugar e circunstância, mas a regra de ouro é sempre seguida: não devemos deixar de fazer pelos demais o que esperamos que eles façam por nós. Os detalhes mudam de geração para geração, ajustando-se aos tempos e ao estágio de maturidade de cada sociedade. A essência do dharma permanece.

Assim, temos a possibilidade de realizar ações espontâneas e ações deliberadas. Svadharma é, agindo deliberadamente, fazer aquilo que é correto. Este é um dos aspectos do Karma Yoga. É necessário pontuar a importância da ação deliberada pois, na maior parte das vezes, o meu desejo contradiz o que é certo. Ou, como diz aquela velha música do Roberto Carlos: “tudo o que gosto é imoral, ilegal ou engorda”. Esse livre arbítrio para escolher entre o prazeroso é o certo é uma das coisas que nos faz humanos.

Qual é o dharma do indivíduo em relação ao Todo?

Um dos pontos centrais deste ensinamento é a compreensão da relação intrínseca entre o indivíduo e o Todo. O indivíduo é chamado vyashti, o Todo, Samashti. Se eu não compreender essa relação, não poderei compreender as demais. E, para compreender essa relação que devo manter com o Todo preciso, primeiramente, compreender quem sou e o que é o Todo. Assim o esteio fundamental do ensinamento do Yoga é que o indivíduo é idêntico ao Todo. Em poucas palavras, o Todo é a inteligência que mantém a coesão das coisas e os seres vivos, que é intrínseca à criação. O indivíduo é você, enquanto ser humano encarnado. Perceber essa identidade é ter moksha, liberdade, já que ao conhecer a nós mesmos como completude, todas as ideias equivocadas que possamos ter em relação à nossa auto-identidade são eliminadas. Assim, vivemos em paz e felizes.

Qual é o meu dharma em relação a mim mesmo?

Cada um de nós nasce dotado de alguma habilidade especial. Naturalmente cria-se um conflito na adolescência em relação às escolhas que a pessoa deve fazer, já que isso vai definir muitas coisas no seu futuro. Às vezes, esse conflito da adolescência se estende à juventude e à fase adulta Assim, algumas pessoas chegam aos 30 ou 40 anos de idade sem ter claro o que querem para si na vida. Se esse for meu caso, ao invés de me angustiar por não ter clara essa vocação profissional, preciso ficar atento às coisas que a vida vai me revelando, aos caminhos que se abrem à minha frente, e escolher aqueles que, sendo prazerosos ou não, estejam em harmonia com o bem comum. Naturalmente, irei escolher aqueles que me forem mais agradáveis, mas não preciso me angustiar por não ter uma vocação meridianamente clara. O que verdadeiramente importa, independentemente das ações que faço, é me manter fiel aos próprios princípios. Aqueles valores dos quais não abro mão de jeito nenhum, são também meu svadharma.

Qual é o dharma do marido em relação à esposa?

Digamos que eu seja feliz e a minha esposa não. Como poderia eu desfrutar da minha felicidade vendo ela sentada num canto da casa, triste e chorando? Se sou casado, a felicidade da minha esposa é a minha felicidade. Meu dever, enquanto marido, é criar condições para a felicidade da minha mulher e não para fazê-la sofrer. Isso significa cultivar compaixão, fazer o outro se sentir valorizado, mostrar interesse, afeto e carinho em todos os momentos. Então, mesmo que seja em meu próprio benefício, eu deveria cuidar muito bem da felicidade da minha esposa. Obviamente, essas atitudes precisam ser recíprocas para que a relação flua da melhor maneira.

Qual é o dharma dos filhos em relação aos pais?

O dever dos filhos em relação aos nossos pais é cuidar deles. É conseguirmos uma forma de comunicação que seja expressão da gratidão que temos por eles terem feito a coisa certa ao nos educar. Provavelmente, se você é um adulto que está lendo esta revista, seus pais fizeram a coisa certa ao lhe ensinar os valores que lhe trouxeram até onde você está agora. Mesmo se tivermos alguma lamúria ou cobrança para lhes fazer, devemos pensar neles com reverência e reconhecimento. Essa gratidão não deveria ficar apenas no plano dos pensamentos ou sentimentos, mas precisa estender-se às ações: demonstrar agradecimento, cultivar a paciência ou dedicar um tempo diário ou semanal a estar e desfrutar com eles, principalmente quando eles estão na terceira idade, são boas maneiras de cumprir nosso dharma em relação aos nossos genitores.

Qual é o dharma dos pais em relação aos filhos?

O dever dos pais em relação aos filhos é prover as condições necessárias para que possam crescer e desenvolver suas habilidades da maneira mais adequada. Assim, é importante que, como pais, demos aos filhos a liberdade para que eles desenvolvam as próprias vocações. Outro dos deveres dos pais é prover amparo e dar aos filhos uma educação com valores que lhes permita compreender que, mais que consumidores, devem crescer como contribuidores para uma sociedade melhor. Noutro plano, se formos pensar na vida de Yoga, o dever dos pais é lembrar aos filhos que existem aspectos da vida muito mais importantes do que simplesmente ter sucesso, prosperidade, prazeres ou confortos materiais sem, é claro, negar a importância desses fatores.

Qual é o dharma da sogra em relação à nora?

A sogra deveria, também em seu próprio benefício, dar à nora total liberdade para que ela seja como é, e para que possa viver feliz com seu marido. Toda sogra deve ter sido nora em algum momento: pode acontecer que ela esteja projetando na nora as frustrações e ansiedade sofridas nas mãos da própria sogra. Muitas vezes, o problema da sogra nasce do sentimento de possessividade que ela nutre pelo filho. Havendo o filho nascido dela, sua tendência natural é pensar nele como uma extensão dela mesma. No entanto, o fato é que ninguém é apêndice de ninguém e a sogra deve ter cuidado para exercer o desapego em relação ao filho, em benefício da felicidade de todos.

Qual é o dharma do cidadão em relação à sociedade?

Embora não esteja de moda nestes tempos de corrupção dominante, tráfico de influência, desvio de recursos públicos e outros crimes praticados descaradamente à luz do dia por uma boa parte dessa inqualificável classe de políticos e governantes que temos que suportar no Brasil, isso não nos isenta de, como cidadãos, fazer a nossa parte. Isso não quer dizer apenas pagar mansamente os impostos, mas também levantar a nossa voz quando se fizer necessário, seja para protestar, seja para apontar ações necessárias para melhorar as condições de vida da sociedade.

É dever de todos, não apenas compreender o que está acontecendo na nossa localidade, mas igualmente participar ativamente, oferecendo soluções, se for o caso, para melhorar as condições da comunidade em que vivemos. Dentre outras coisas, cabe lembrar que um dos deveres do cidadão, em relação ao Estado, é justamente o de escolher bem os governantes e, se for o caso, ajudar os demais a fazer uma escolha esclarecida. Pense nisso nas próximas eleições.

Conclusões

Bom, esta lista poderia se estender bastante mais, mas vamos parar por aqui, citando duas estrofes de um mantra védico chamado Svastipatha, que ilustra o que seriam esses direitos e deveres dhármicos numa sociedade harmoniosa:

Om. Que a prosperidade e o bem-estar sejam glorificados.
Que os governantes nos governem com retidão e justiça.
Que a sabedoria e o conhecimento sejam protegidos.
Que todos os seres, em todos os lugares, sejam felizes.
Om, que haja prosperidade para todos.
Que todos vivam em paz; que todos sintam a plenitude.
Que todos estejam bem; que todos sejam felizes.
Que todos estejam livres de doenças.
Que todos vejam o bem; que ninguém sofra.

Como acabamos de ver, o svadharma é realizado nas pequenas coisas do cotidiano. De vez em quando aparece alguma tarefa mais delicada, como aquele acidente em Bali mas, de modo geral, seguir o próprio dharma tem mais a ver com estar atento em relação às coisas que a vida nos coloca, e trilhar com cuidado os caminhos que estamos seguindo, do que em buscar alguma vocação ou destino glorioso.

Destino glorioso também é uma expressão que precisa ser bem compreendida: não estamos dizendo que isto que devamos nos resignar a ter uma vida medíocre ou cinza, mas sermos capazes de ver que, mesmo nas menores coisas do dia-a-dia, é possível vivermos a plenitude e a tranquilidade que nos dá o fato de saber que estamos fazendo a coisa certa. A questão que verdadeiramente importa não é se seremos famosos, ricos ou heróicos, mas se somos fiéis a nós mesmos e aos nossos valores, e se realizamos a nossa felicidade, independentemente do tipo de trabalho que fazemos. Namaste!


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Publicado originalmente na revista Yoga Journal, www.eyoga.com.br.

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