Textos
O Caminho do Meio no Hatha Yoga - Pedro Kupfer
Por Pedro Kupfer
Quando pensamos em certos tipo de prática de Haṭha Yoga que estão em voga hoje em dia, vêm à nossa mente a coisas como esforço excessivo, copiosa transpiração, respiração pesada ou difícil e, em alguns casos extremos, tensão e lesões. Vemos, com alguma frequência, pessoas se esforçando muito além da conta, praticando como se não houvesse amanhã, com atitudes de fanatismo e irresponsabilidade. Quem pratica fazendo um esforço exagerado, que pode se traduzir em lesões ou perda da integridade física, não está pensando no futuro, nem construindo uma relação de longo prazo com o próprio sādhana.
Essa é uma atitude arriscada e até mesmo irresponsável, pois a pessoa reduz seriamente a chance de ser bem sucedida no Yoga. Assim, se quisermos levar a nossa prática pessoal a bom porto, precisamos ponderar sobre o que é sábio esperar dela e o que possam ser apenas expectativas infundadas. Para que praticamos āsanas, prāṇāyāmas e meditação? Como praticar sem colocar em risco a nossa integridade física? Tentaremos responder estas questões ao longo do texto.
Porque praticar?
A resposta a esta questão parece fácil: se o objetivo do Yoga é mokṣa, a liberdade, então o propósito da prática deve ser esse mesmo. A conta é aparentemente fácil: praticando conscienciosamente, com cuidado, disciplina e assiduidade, um dia, por arte de mágica, a iluminação irá acontecer. Certo? Infelizmente, essa leitura da maneira em que o Yoga opera está equivocada. Ninguém, nunca, se iluminou apenas por ficar fazendo posturas, por “avançadas” que possam parecer, assim como ninguém nunca se iluminou por fazer prāṇayāmas ou mantras. Mesmo se forem repetidos durante décadas, estes exercícios são apenas ações, e ações não iluminam ninguém.
Se assim fosse, seria muito fácil: qualquer pessoa suficientemente flexível, forte o concentrada poderia, num prazo razoável, alcançar o estado de liberdade. Práticas de concentração e meditação, se devidamente aperfeiçoadas, são capazes de levar o yogi ou a yoginī a um estado transitório conhecido como samādhi, que abrange vários tipos de experiência extática. Ora, esses estados de êxtase ou ênstase, ao dizer de Mircea Eliade, não são o objetivo final do Yoga mas ferramentas auxiliares que ajudam o praticante a lembrar da sua própria natureza.
O processo do Yoga, conforme é explicado na Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad, consta de tres etapas: śravaṇam, mananam e nididhyāsanam. Śravaṇam é ouvir o ensinamento. Mananam, questioná-lo e esclarecer as dúvidas. Nididhyāsanam e meditar sobre o que se sabe sobre si mesmo. O objetivo imediato das práticas menos sutis do Haṭha Yoga, como purificações, āsanas e prāṇayāmas é o de manter a saúde do corpo, a longevidade e o bem-estar. Num plano mais sutil, os āsanas, bem sabemos, nos ajudam a eliminar couraças de tensão e mobilizam de maneira intensa o fluxo da energia vital. No melhor dos casos, a prática de āsana, prāṇayāma ou mantra poderia se considerar um exercício de nididhyāsanam, desde que feita com a atitude adequada. Porém, o amigo leitor há de reconhecer, nenhum desses objetivos é mokṣa.
Praticamos, não para nos iluminar, senão para termos saúde, longevidade e condições adequadas e conduzentes para que a iluminação tenha lugar. Mokṣa não depende de flexibilidade, força, condicionamento físico. Tampouco depende da capacidade de reter o ar por longos períodos ou de controlar o processo respiratório. A rigor, nem sequer depende da saúde do corpo físico embora, como ensina o sábio Patañjali no Yoga Sūtra, a doença seja um obstáculo para o Yoga.
Mokṣa não é uma experiência, nem o resultado de alguma ação. Mokṣa é o reconhecimento de si mesmo como alguém que já é intrinsecamente livre de limitações. Para ter mokṣa, preciso conhecer a mim mesmo. Para isso, preciso receber instrução de um professor qualificado, eliminar minhas dúvidas e refletir constantemente sobre minha natureza real. Nada mais. A esse respeito, diz a Muṇḍaka Upaniṣad, (I:2.12):
parīkṣya lokān karmachitān brahmaṇonirvedam āyānnāstyakṛtaḥ kṛtena | tadvijñānārthaṁ sa gurumevābhigacchetsamitpāṇiḥ śrotriyaṁ brahmaniṣṭham ||
“Examinando as experiências obtidas pelas ações, que a pessoa de discernimento possa encontrar o desapego. Mokṣa, que não é criado, não pode ser obtido através de ações. Portanto, para ter o conhecimento de Brahman, ele deve ir, com os gravetos sacrificais nas mãos, até um professor bem versado nas escrituras, que tenha um claro conhecimento sobre Brahman”.
Como praticar sem colocar em risco a integridade física?
Havendo ficado claro que o objetivo do Yoga não se encontra nos aspectos físicos, vitais ou energéticos da prática, resta-nos, pensar numa maneira eficiente e saudável de praticar os diversos exercícios do Haṭha. Estabelecidos num patamar de calma em relação ao que podemos esperar e ao que não devemos buscar nas experiências corpóreas, sejam estas densas ou sutis, verificamos que, numa relação de longa data com o Yoga, existe a possibilidade de praticarmos pelo resto das nossas vidas, seja lá o que isso significa.
No meu caso pessoal, estou praticando Yoga consistentemente há 29 anos. Não imagino que possa parar um dia. Mas, ao longo destas quase três décadas, tive que fazer muitos ajustes, tanto na intensidade como na duração das práticas cotidianas. Se, antigamente, tinha tempo e disposição para praticar até oito horas diárias de āsana, hoje em dia não tenho essa disponibilidade de tempo e energia.
Assim, junto com a idade, vieram algumas limitações naturais, advindas dos vários acidentes de percurso que tive en escaladas, pedaladas, sessões de surf e até mesmo incidentes dentro da sala de Yoga. A cada momento, preciso avaliar como o está o corpo para ajustar o que for preciso ajustar. Posso fazer práticas intensas, mas sempre tomando o cuidado que as minhas articulações merecem e pedem.
Por outro lado, percebo que consegui também reduzir o tempo de prática enquanto aumentei a eficiência daquilo que pratico. O corpo se movimenta com prazer, buscando aquilo que lhe faz bem, que energiza, expande, relaxa e tonifica. O ego, naturalmente, pode se entusiasmar. Buddhi, a inteligência, está presente, atenta, para evitar que o excesso de entusiasmo do ego, baseado no bem-estar que a prática proporciona, leve o corpo para situações nas quais ele não deveria estar.
Tenho o objetivo de seguir o exemplo de muitos praticantes cujo entusiasmo e amor pela prática nunca esmoreceu. Alguns deles, como BKS Iyengar ou o professor Hermógenes, continuam inspirando gerações de praticantes até hoje. Tenciono continuar esse processo baseado na aplicação de três princípios que têm se revelado essenciais para levar a prática adiante: ahiṁsā, tapas e asteya. A combinação desses três valores resultou, no meu caso, absolutamente essencial para levar a prática pelo bom caminho. Agora, estudaremos eles, um a um.
Ahiṁsā.
Evidentemente, ahiṁsā, a não-violência deve ser parte integrante das atitudes com as quais pratico. Ahiṁsā é ser pacífico e tranquilo, evitanto toda e qualquer forma de agressão. Onde nasce a não-violência? Como ela opera? Swāmi Dayānanda esclareceu esses importantes pontos num retiro que fizemos este ano na cidade sagrada de Rishikesh, na Índia:
“O dharma básico é a constatação de que, se eu não quero ser ferido, não devo ferir os demais. Para evitar nos colocar em situações indesejáveis, devemos os ater aos valores universais, como o da não-violência, ahiṁsā, já que naturalmente, nenhum ser vivo quer ser ferido. O mesmo que queremos para nós, devemos querer para outrem.
“Se eu tenho claro que não quero ser ferido ou morto, devo estender esse mesmo sentimento a todos os demais, sejam humanos ou não. Estar em concordância com esses valores universais é se colocar em harmonia com Īśvara. Todos os yamas e niyamas partem da mesma base. Qualquer um desses valores têm a mesma intenção: me ajudar a usar o meu livre arbítrio da melhor maneira”.
Estendendo o princípio da não-violência ao meu próprio corpo, preciso elaborar uma estratégia durante a prática para evitar qualquer tipo de violência em relação a ele, bem como evitar qualquer tipo de lesão ou agressão. Para isso, devo ir com cuidado e atenção, observando uma atitude tranquila e compassiva em relação ao corpomente.
Muitas vezes acontecem lesões por esforço repetitivo, que também precisam ser evitadas. São aquelas lesões que surgem quando fazemos muitas vezes o mesmo movimento ou repetimos muitas vezes o mesmo āsana. Se isso não for feito com o devido cuidado, pode haver uma “fadiga de material”, o que pode dar lugar a lesões de tendões, ligamentos ou discos intervertebrais.
Tapas.
Tapas ou tapaḥ pode ser traduzido como “esforço sobre si próprio”. Deriva da raíz tap, que quer dizer “tornar-se ardente”, e está vinculado à fricção ou ao calor interno que é gerado através de um esforço constante. As práticas de tapas estão presentes na literatura do Yoga, já desde os tempos do Ṛg Veda, pois essa atitude ocupa um lugar central no processo do autoconhecimento.
Consiste em fazer um esforço contínuo para se manter no estado de atentividade, essencial para a boa continuidade do processo do autoconhecimento. A mesma Muṇḍaka Upaniṣad que citamos anteriormente nos esclarece sobre a importancia de tapas (III:2.4):
nāyamātma balahīnena labhyaḥna cha pramādāt tapaso vāpyaliṅgāt | etairupāyairyatate yastu vidvāntasyaiṣa ātmā viśate brahmadhāma ||
“[O conhecimento sobre] Ātma não é obtido por aquele que não tiver força. Tampouco por quem for omisso, nem por quem busca o conhecimento sem ter renunciado [aos desejos por anātman]. No entanto aquele que cultivar o discernimento e se esforçar por estes meios, entra na casa de Brahman (Brahmadhāma)”.
Traduzindo este valor para a maneira de praticar, devemos olhar para nosso sādhana como um momento onde existe um esforço constante, não apenas no sentido físico, mas também no sentido de evitar nos machucar, através das observação atenta e da prática da compaixão em relação ao próprio corpo. Noutras palavras, esforçar-nos sem forçar. Esforçar-se continuamente sim, mas nunca ultrapassar os limites naturais do corpo.
Tapas, na prática, se traduz na forma do calor corporal que é gerado naturalmente quando um esforço razoável é feito. Em dias de calor, é natural transpirar. No sul do Brasil, durante o inverno, por vigorosa que a prática seja, ela não deve produzir excessiva transpiração. Em práticas onde sintamos que o corpo está muito bem disposto, é possível explorar os limites da força, a permanência ou o equilíbrio em certas posições.
Na medida do possível, quando o praticante já desenvolveu independência e aprendeu a construir sozinho sua prática pessoal, ele deve incluir āsanas ou prāṇayāmas que estejam de acordo com o corpo que ele tem, as necessidades desse corpo e o momento em que a prática está sendo feita. Esse último item inclui a estação do ano, a altura do dia, a temperatura ambiente e outros fatores similares.
Asteya.
Asteya significa literalmente “não-roubo”. Traduz-se como honestidade. Aqui, deve ser interpretado no sentido de evitar o impulso de arrancar do corpo algo que ele não entrega naturalmente. Muitas vezes nos defrontamos, ao fazer āsanas, prāṇayāmas ou meditação, com os limites naturais do físico, da capacidade vital ou da mente.
Nos momentos nos quais este tipo de limitação se revela, pode acontecer de o ego querer forçar as coisas e forçar o corpo para além da sua capacidade, resistência, alongamento, equilíbrio ou concentração. Isso é uma espécie de roleta russa que o praticante desatento joga com seu próprio corpomente. Pode ser que a pessoa não se machuque ou frustre, mas a chance é grande e está sempre presente. Cedo ou tarde, o indesejável pode ter lugar.
Cultivando a observação constante, o praticante permanece atento aos sinais do seu corpo: respiração irregular ou ofegante, excesso de transpiração, mente dispersa, falta de estabilidade na postura e sensações de dor são sinais de que as coisas não estão fluindo da maneira que deveriam. Nesses casos, ao invés de insistir no erro, o yogi consciente deveria parar, avaliar a situação e ajustar o que fosse preciso ajustar.
Uma regra importante é evitar os ângulos nos quais haja dor nas articulações. Qualquer dor dentro de uma articulação, seja o quadril, os ombros ou a coluna lombar, é sinal de falta de alinhamento e/ou falta de espaço para que o movimento aconteça de maneira saudável. Nesse caso, é desejável contornar os pontos onde a dor acontece e/ou diminuir o ângulo no qual a ação de estender o fletir estiver acontecendo.
Assim, podemos considerar que asteya seja o caminho do meio, o ponto de equilíbrio entre ahiṁsā e tapas. Aplicando os três princípios ao mesmo tempo conseguimos o equilíbrio adequado e necessário para que a prática transcorra da melhor maneira possível, na intensidade e duração adequadas, ao mesmo tempo em que lidamos objetivamente com as expectativas que o nosso ego possa elaborar em relação ao que significa praticar Haṭha Yoga, bem como em relação aos resultados que podemos obter dessa prática.
Namaste!
Publicado originalmente nos Cadernos de Yoga: www.cadernosdeyoga.com.br.
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