Textos
Vedanta Para Quê? Pedro Kupfer
por Pedro Kupfer
Tempos atrás, escrevi um texto cujo título era “Yoga para que?” Agora, depois de ter respondido algumas vezes para amigos praticantes o que há no Vedānta que fascina tantos yogis, e que nos leva ano após ano de volta para a Índia para continuar estudando, escrevo este outro texto, complementar àquele, para tentar responder essa questão.
Vida de Āśram.
Muitos brasileiros visitam o Āśram. Alguns ficam semanas, entanto que outros participam ocasionalmente das atividades da nossa pequena comunidade de brasileiros e portugueses, habitués do Āśram. Nessas breves visitas, alguns praticantes nos pedem recomendações sobre professores ou cursos de Yoga na cidade onde ficamos, Rishikesh. A bem da verdade, não conhecemos bem o ambiente dos professores de Yoga daquela cidade sagrada, que aliás é bastante grande, pois ficamos concentrados no estudo e na nossa prática pessoal, pouco andamos pela pequena cidade, afora os banhos e remadas no rio Ganges ou alguma saída para almoçar fora com os amigos.
Lembro da cara de decepção de uma menina que nos pediu recentemente a recomendação de um curso de formação em Yoga. Ela deve ter pensado que fizemos pouco caso do seu pedido quando lhe dizemos que não conheciamos bons formadores em Yoga em Rishikesh. Porém, não foi falta de consideração da nossa parte: quando estamos concentrados no que encontramos, paramos de buscar e dar voltas buscando novos professores e não buscamos mais “novidades espirituais”. Assim, não ficamos sabendo nem das coisas boas que possam acontecer na área, nem das menos boas.
A agenda diária de estudo e prática é muito intensa, pois se complementa ainda com pūjās no templo, estudo de sânscrito, canto védico e convívio intenso. Nesse conviver aprendemos a colocar na prática o que estudamos nas aulas. Sempre há alguém que pode precisar da nossa ajuda, de alguma medicina, uma massagem, um conselho ou algum favor. Sempre há alguém distribuíndo prasāda, alimento consagrado, ou algum colega precisando matar uma dúvida. Sempre há alguém contribuíndo com alguma coisa para o bem comum.
Monodieta.
Tem uma verdade muito simples sobre o Vedānta: se você faz um curso de 12 anos, ou de três anos, ou de seis meses, ou de uma semana, você não escuta nada novo. A beleza disso é que pode ser ao mesmo tempo tão fresco, apesar da repetição. Há uma profunda verdade nisso.
Você chega no Āśram para estudar, e come a mesma comida todo santo dia. Você pode comer a mesma comida durante toda a vida. Você come porque há apetite, e ele se renova constantemente. Para comer, requere-se apetite. Em relação ao conhecimento vale a mesma coisa. Porém, cabe a pergunta, como é que alguém pode ouvir a mesma coisa o tempo todo sem se cansar? O que é que torna o conhecimento tão fresco? O que faz com que ele se renove constantemente? Não é o apetite pelo frescor o que torna o conhecimento fresco.
Não é infrequente, por exemplo, ter a sensação de que se está ouvindo a instrução por primeira vez. Isso acontece até mesmo com pessoas que estudam há mais de meio século. Tampouco é rara a sensação de que o ensinamento parece ter sido moldado especialmente para nos esclarecer coisas sobre alguma situação pontual que estejamos vivendo.
Espelho, espelho meu...
Você não se cansa de olhar para o seu rosto. Não é que você aceite a sua cara totalmente, pois você pode sempre se queixar de que algum detalhe poderia ser diferente no queixo, no cabelo, nas sobrancelhas. Podemos ter algum conflito em relação a isso, mas não perdemos a chance de olhar para este rosto que nos foi dado.
Esse amor que a gente nutre pela gente surge de ānanda, da plenitude que somos: qualquer objeto de amor é uma fonte de ānanda. Ou, ao menos, assim cremos. Dizer “eu te amo” é um reflexo disso. Dizemos ao outro “eu te amo” porque a pessoa amada nos faz sentir totalmente aceites como somos.
Dado que a natureza do Ser que você é, é ānanda, quando você vê seu rosto refletido no espelho, até o reflexo ser inibido por algum autojulgamento desabonador, ele é uma expressão desse ānanda. O Vedānta nos permite ver isso. Esse é o ensinamento. No Vedānta, o objeto de estudo é você mesmo. O ensinamento revela quem você é. Assim, recomenda-se se manter em contato com o ensinamento.
O próprio e o impróprio, o dharma e o adharma.
O Vedānta nos ajuda a ler corretamente cada situação que vivemos, e nos mostra os caminhos para uma vida harmoniosa. Uma conduta pode ser própria ou imprópria, de acordo com cada cultura, lugar, conjunto de costumes ou etiqueta. Isso não está conectado com o dharma, nem com o que é certo ou errado.
Um dia livre, no intervalo entre dois intensivos, peguei a minha prancha de remada e desci desde Rishikesh até Haridwar para assistir a linda cerimônia do āratī nas margens do rio naquela cidade. São 24 quilômetros de descida. Como naquele dia havia muito vento contrário e pouca água no rio, resolvi descer pelo canal da represa hidroelétrica, que é mais rápido e direto. Já havia feito isso algumas vezes e sabia o que me esperava: tinha que passar por dentro de duas turbinas no caminho, buscando a melhor linha na água, o que não é assim tão complicado nem perigoso, se comparado com o surf em ondas grandes.
Quando estava chegando no fim do canal, dei azar: a polícia me pegou por invadir uma área de segurança. Os coitados dos policiais achavam que eu ia me matar no degrau de 50 metros de altura que separa aquele canal do rio. Conclusão: fui parar na delegacia. O ambiente se distendeu quando os representantes da força pública perceberam que eu não era um terrorista excêntrico e terminamos cantando bhajans para Kṛṣṇa. Minha esposa e alguns amigos foram me resgatar pouco tempo depois. Essa pequena transgressão pode ser imprópria para os códigos da sociedade, mas não é adharma, não é contrária ao dharma.
O que determina o carácter moral de uma ação é a intenção com a qual é feita. Se não houve intenção de ferir, não haverá um fruto indesejável posterior. A indiferença em relação ao sofrimento dos demais sim, é adharma. Viver uma vida de Yoga é escolher o caminho da não-violência, de ahiṁsā, de não ferir ninguém, nem por palavras nem por ações.
A síntese.
O Vedānta é crucial para compreendermos que não há nada, nenhuma emoção, nenhum pensamento, nenhum desejo ou aversão, que não seja parte da ordem divina, da ordem de Īśvara. Serve para que possamos compreender isto, o que é essencialmente, algo bem prático. E não há nada mais prático que ser ciente da realidade das coisas.
Não há nada mais prático que o Vedānta, pois ele serve para nos livrar do feitiço das nossas próprias projeções sobre a realidade, para buscar o espaço que traz a consciência da ausência do sentimento de alienação, que é o que o Vedānta nos mostra. Não há nada mais nem nada melhor que isto para se fazer. Essa é a síntese do ensinamento. O Todo está sempre aqui. Sempre esteve. E você é esse Todo.
A solução que o Vedānta propõe, então, não é viver isolado num Āśram para sempre, mas ficar num lugar destes por um período, receber o ensinamento, matar as dúvidas, conhecer a si mesmo como aquele que é livre de limitações e crenças, e depois sair para fazer a diferença no mundo, fazendo o que corresponde, o que temos que fazer. É para isso que o Vedānta existe. Hariḥ Oṃ!
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