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A Meditação na Tradição Yogika - Parte 4

Por Pedro kupfer

Completando no presente artigo o tema da meditação na tradição do Yoga, trazemos agora à atenção do amigo leitor uma reflexão sobre a consciência testemunha, chamada sākṣi em sânscrito. Assim como as primeiras três partes deste texto, o presente artigo também está baseado nos ensinamentos e aulas práticas que tivemos com Swāmi Dayānanda.

Para entrarmos no tema, nada melhor que recorrermos à Pañchadaśī, um belíssimo texto sobre Vedānta atribuído ao sábio Vidyāraṇya, que foi ministro do império Vijayanāgara, no século. Ele abandonou esse posto administrativo e se tornou um sannyāsin, um renunciante. Seu nome significa “A Floresta do Conhecimento”.

Sākṣi na Pañchadaśī.

A Pañchadaśī é um prakaraṇam, um texto de apoio ao Śruti, os mantras revelados no período védico, que faz parte do sampradāyaḥ, da linhagem tradicional. Ela consta de quinze capítulos, nos quais o autor apresenta o sistema do Vedānta. Aliás, o nome Pañchadaśī significa justamente “A dos Quinze [Capítulos]”. Há estudiosos que consideram que podemos aprender tudo o que há para se conhecer no Vedānta compreendendo apenas esta obra.

Então, cabe darmos aqui uma pequena explanação sobre o significado do termo prakaraṇam. Swāmi Dayānanda afirma que um prakaraṇam é “um texto que nos ajuda a evitar distorções, modismos, equivocações, ao mesmo tempo em que nos ajuda a nos manter firmes na visão clara. O Vedānta deve ser ensinado por alguém cujo coração esteja batendo agora, por um professor vivo. Não pode ser aprendido através de livros”.

As estrofes nove a 16 do décimo capítulo da Pañchadaśī aludem à encenação de uma peça de teatro e, de uma maneira muito poética, aludem à Consciência Testemunha e seu papel, não só na meditação, mas em todos os momentos vividos:

Aquele que ilumina simultaneamente
o fazedor, a ação e os objetos percebidos
é chamado Sākṣī, Consciência Testemunha. || 9 ||

A Testemunha, assim como a lamparina no teatro,
ilumina todos os pensamentos, como eu vejo,
eu ouço, eu cheiro, eu saboreio, eu toco. || 10 ||

A lamparina no teatro ilumina por igual
o mecenas, a audiência e a bailarina.
Ilumina, até mesmo, a ausência deles. || 11 ||

[Similarmente], a Testemunha ilumina o ego,
a inteligência e igualmente os objetos.
Na ausência do ego, brilha da mesma forma. || 12 ||

À luz da sempre efulgente, invariável Testemunha,
que é da natureza da Consciência, a inteligência,
iluminada, dança de maneiras variadas. || 13 ||

Nesta ilustração, o mecenas é o ego, a audiência,
os objetos dos sentidos, a bailarina é a inteligência
e os músicos que tocam seus instrumentos
são os sentidos, como o olhar e os demais.
A lamparina é a Testemunha, que tudo ilumina. || 14 ||

Assim como a lamparina, ficando em seu próprio lugar,
ilumina tudo à sua volta, da mesma maneira a Testemunha,
permanecendo imóvel, ilumina tudo ao redor, dentro e fora. || 15 ||

A distinção entre o externo e o interno acontece
com referência ao corpo[mente], e não à Testemunha.
Os objetos são externos ao corpo, o ego é interno. || 16 || [1]

Neste trecho, listam-se os indivíduos e elementos que fazem parte dessa misse en scène. A dançarina é buddhi, a inteligência. A dança envolve movimento, mudança e portanto instabilidade, assim como acontece com os movimentos do pensamento. A música e o cenário são os labirintos dos desejos.

O diretor da peça é manaḥ, a mente. O rei que assiste à peça, mecenas das artes, representa o ego, ahaṅkāra, por cujo desejo a peça tem lugar. Os músicos e atores auxiliares simbolizam os órgãos dos sentidos e das ações. O palco é o mundo, o próprio saṁsāra.

Se podemos dizer que a vida seja uma dança, os desejos são a força motora que nos impulsiona e motiva para dançar, para viver. Tudo é iluminado pela luz, que é o que permite que o espetáculo aconteça. Essa luz da consciência é Brahman, é você. Essa luz, como você sabe, não é afetada por nenhum dos acontecimentos que ela ilumina. Essa é a razão pela qual ela é chamada nirañjan, imaculada.

Sākṣi e sākṣyam, a Testemunha e o testemunhado.

Não existe diferença entre a Testemunha e aquilo que é testemunhado. Não há diferença entre sākṣi e sākṣyam. Todo e qualquer obstáculo que possa surgir no caminho do Yoga reside ou se origina na interpretação equivocada que possamos fazer da palavra ahaṁ, que poderíamos traduzir como “Eu”, ou “Eu sou”. Não devemos confundir o Ser, ahaṁ, com ahaṅkāra, o ego.

A palavra sākṣi é um apontador que revela Ātma, o Ser. Quando dizemos Eu, desde a compreensão do Ser que somos, não há, ou não deveria haver, confusão em relação ao significado dessa palavra: dizendo Eu, apontamos apenas para Ātma. Qualquer outro significado que possamos atribuir a esse termo será incidental ou circunstancial.

Sākṣī e os vṛttis.

A estrofe inicial destas que citamos acima diz: “Aquele que ilumina simultaneamente o fazedor, a ação e os objetos percebidos é chamado sākṣī, Consciência Testemunha”. Os vṛttis são o corpo da mente, que são, por sua vez, observados pela Consciência. Na ausência de vṛttis, a consciência permanece, como acontece durante o sono profundo ou no fugídio estado de nirvikalpa samādhi, quando a mente permanece em estado de suspensão.

Para realizar qualquer ação e necessário um esforço, ou uma série de esforços. Porém, para iluminar as ações, os objetos e o kartaḥ, o fazedor dessas ações, sākṣī não realiza nenhum esforço. Sākṣī não precisa ser testemunhada por mais nada nem ninguém.

A água não é a "essência" da onda, mas é a própria onda. Similarmente, a consciência é o conteúdo dos pensamentos. Está em cada um deles. Sākṣī é a testemunha que aprecia tanto o fazedor, quanto as ações, quanto os objetos, quanto a si mesma. Assim, ao meditar, é sábio lembrarmos que não devemos nos esforçar no sentido de eliminar pensamentos, mas no sentido de iluminar esses mesmos conteúdos.

Sākṣī é a luz que ilumina a cena.

A décima estrofe define sākṣī nos seguintes termos: “A Testemunha, assim como uma lamparina no teatro, ilumina todos os pensamentos, como eu vejo, eu ouço, eu cheiro, eu sinto sabor, eu toco”. A Testemunha é comparada aqui a uma lamparina usada para iluminar uma apresentação de música e dança.
A palavra nṛtya-śālā designa um auditório circular, usado antigamente para as apresentações da arte dramática indiana, Natyaśāstra. Ocupando o centro do palco havia sempre uma lamparina gigante, cheia de pavios dispostos em círculos, em vários níveis, que iluminava tudo e todos à sua volta.

O Natyaśāstra, essa arte dramática, envolvia não apenas a dança propriamente dita, mas igualmente música, canto, teatro e narração de histórias. Quando a bailarina representa um sentimento de alegria, a luz ilumina. Quando o sentimento muda para tristeza, a luz igualmente ilumina.

A luz não escolhe, não seleciona quem vai iluminar e quem não. Não há julgamento de nenhum tipo. Tudo é iluminado, simultaneamente, e com a mesma intensidade. Similarmente, a consciência não escolhe o tipo de pensamento que ela ilumina. Este exemplo, essa comparação da lamparina com a Consciência Testemunha é o que dá nome ao presente capítulo da Pañchadaśī. Assim, sākṣī ilumina, apenas sendo, sem esforço algum, todos os objetos à sua volta.

A bailarina como símbolo do psiquismo.

Na estrofe 11 Vidyāraṇya menciona os elementos da metáfora: “A lamparina no teatro ilumina por igual o mecenas, a audiência e a bailarina. Ilumina, até mesmo, a ausência deles”. Aqui ele aponta para a luz como a causa que sustenta e permite que a encenação tenha lugar. Nṛtyaśālāsthito dīpaḥ: a luz que está na sala de dança ilumina indistintamente tudo à sua volta. Ela não escolhe quem ou o quê vai iluminar. Através de seu brilho, permite que tudo o que há à sua volta seja visto, apreciado. O mecenas ou organizador da função, prabhuṁ, a platéia, sabhyāṁ, e a bailarina, nartakī.

Se não houvesse lamparina, não haveria espetáculo. Logo, na estrofe 12, alude à encenação como metáfora da vida: “[Similarmente], a Testemunha ilumina o ego, a inteligência e também os objetos. Na ausência do ego, ela brilha da mesma forma”. A luz estava desde antes da dança começar, está presente durante ela, e permanece depois que a dança termina e os artistas se retiram.

Quem é a bailarina? Aquela que tem liberdade para se movimentar no palco. Ela representa os diversos estados de ânimo, os diversos sentimentos, que se chamam rāsas ou "essências" no natyaśāstra, na arte dramática da Índia. Estes rāsas são as nove emoções básicas, que o artista deve inspirar, sequencialmente, na platéia, e que terminam em śāntaḥ, o estado da mais absoluta tranquilidade.

Os artistas podem ser músicos, bailarinos, pintore e até um construtores de templos. A visão estética que tem jubjazente em todas as formas de arte é sempre a mesma. A bailarina usa roupas especiais, guizos, maquiagem e flores no cabelo. Dança ao som de música que tem como objeto apoiar a linha narrativa que ela desenvolve através de seus movimentos.

Para tanto, ela utiliza uma linguagem gestual toda especial chamada mudrā, através da qual consegue expressar, narrar e transmitir as histórias dos Purāṇas, dentre outras. O Bhāratanatyam, uma das várias formas clássicas da dança indiana, possui uma série de códigos que, se corretamente compreendido, permite à platéia apreciar as histórias que a bailarina conta através dessa linguagem gestual, na qual ela não precisa usar palavras.

Na estrofe seguinte, o sábio explica que a bailarina representa buddhi, a inteligência. Ela faz sua tarefa para a satisfação do mecenas, que simboliza ahaṅkāra, o ego, motor dos desejos, e dá à platéia uma série de experiências, os rāsas que mencionamos acima, que representam a variedade de experiências que é o vyavahāraḥ, a vida encarnada.

Ātma é a bigorna que molda as coisas.

A estrofe 13 menciona o termo kuṭaḥ, que significa literalmente bigorna, mas que pode ser traduzido como invariável, e define, neste contexto, aquilo que não muda: “À luz da sempre efulgente, invariável Testemunha, que é da natureza da Consciência, a inteligência, iluminada, dança de maneiras variadas”.

Esclarecendo o significado desse termo, diz Swāmi Dayānanda: “Kuṭaḥ significa imutável, e designa aquilo que não muda. Indica, em sânscrito, a bigorna que o ferreiro usa para dar forma aos instrumentos que fabrica. A bigorna permite que o artesão bata no metal incandescente, para que este assuma as variadas formas das ferramentas e objetos que ele produz, sem sofrer nenhuma modificação nela mesma. Assim, a bigorna é símbolo de Ātma, que dá lugar a todos os nomes e formas sem mudança aparente nele mesmo”.

Discernindo sākṣi da mente.A última estrofe deste trecho diz que “a distinção entre o externo e o interno acontece com referência ao corpo[mente], e não à Testemunha. Os objetos são externos ao corpo, o ego é interno”. Isto não significa que sākṣī esteja “no interior” de algo maior que ele, mas que, sendo ilimitado, não está condicionado por tempo ou espaço e, portanto, não tem nem interior nem exterior. Não há divisão para sākṣī. A Testemunha está tanto dentro quanto fora, pois é consciência ilimitada. Não tem localização, portanto, não precisa nem pode ser encontrada “dentro”. A eventual confusão entre sākṣī e a mente precisa ser esclarecida.

A água assume a forma do recipiente que ela ocupa. Similarmente, a mente adquire a forma dos objetos que enxerga através dos sentidos. Portanto, a natureza de buddhi é a inconstância, o movimento constante, uma vez que os sentidos nos transmitem incessantemente sensações e percepções. É preciso que a mente esteja de fato voltada para o exterior, para poder ver o que está aí para ser visto, por exemplo, quando você está dirigindo seu veículo na cidade.

Se a mente não acompanhar os sentidos em direção ao exterior, não poderíamos por exemplo usar um carro ou uma bicicleta sem nos colocar em perigo ou sem colocar em perigo a vida dos demais. Não há nada de errado, então, com o fato da mente viver voltada para fora. Pelo contrário: uma mente que não seja capaz de se voltar para o exterior será uma mente disfuncional, incapaz de realizar adequadamente suas funções.

O problema é atribuir a sākṣī essa inconstância e essa exterioridade características da mente. Este tema é esclarecido em detalhes nos próximos versos. Āropya, a superimposição, é fazer uma projeção de alguma coisa sobre outra, de maneira que não mais consigamos enxergar o real por trás do projetado.

O grande problema é não compreender que somos a Consciência invariável, e não a inconstância da mente. Compreender esta parte do processo do autoconhecimento é essencial para podermos levar a meditação da sala de práticas para o cotidiano, para podermos tornar Karma Yoga todas e cada uma das nossas ações.

Sākṣī está nas experiências místicas, mas também nas profanas.

A Consciência que é sākṣī não está “além” da palavra ou do pensamento, como alguns autores declaram, nem que ela possa ser o objeto de alguma experiência mística ou religiosa. A Consciência não cabe numa ideia, porque as ideias são intrinsecamente limitadas pelo tempo-espaço. A Consciência é autoefulgente e ela ilumina a inteligência, ilumina a mente.

Esses autores dizem que Ātma só poderia ser “experienciado” em estados de meditação profunda, mas não é bem assim: Ātma está em todas as experiências, Ātma é todas as experiências. Para conhecer o sabor doce, precisamos provar algum alimento doce. Para conhecer o sabor salgado, precisamos provar algo que seja salgado.

Pela mesma conta, poderíamos então, provar o “sabor” de Ātma? Poderíamos “experienciar Ātma”? Ātma pode ser um objeto da sua apreciação? Se alguém dizer que experienciar Ātma é como desgustar uma fruta exótica e deliciosa, estará necessariamente reduzindo o ilimitado a uma única experiência, que tem início, meio e fim. Ora, acontece a Ātma não tem nem início, nem meio, nem fim.

Portanto, não temos nem a necessidade, nem a possibilidade, de tornar Ātma um objeto da nossa percepção. Não iremos conseguir fazer isso, nem devemos, nem precisamos. Essa é a razão pela qual Ātma é chamado sākṣī, Testemunha: para indicar que essa Testemunha não pode se tornar um objeto que seja observado por um sujeito.

Ātma é o sujeito que aprecia todos os objetos, e esse sujeito é você, é eu, é cada um de nós, é todos os seres vivos e objetos inanimados, é a totalidade da criação e a inteligência graças a qual ela existe. Cultivando esse discernimento na prática de meditação, seremos capazes de levar a mesma visão clara para todos os momentos do nosso cotidiano. Boas práticas! Namaste!

|| अेोम् अेोम् अेोम् अेोम् अेोम् अेोम् अेोम् अेोम् अेोम् अेोम् अेोम् ||
[1] O original em sânscrito diz:

kartāraṁ cha kriyā tadvat | vyāvṛtta-viṣayān api |
sphorayed ekayatnena | yosau sākṣyatra chidvapuḥ || 9 ||
īkṣe śṛṇomi jighrāmi | svādayāmi spṛśāmyaham |
iti bhāsayate sarvaṁ | nṛtya-śālāstha-dīpavat || 10 ||
nṛtyaśālāsthito dīpaḥ | prabhuṁ sabhyāṁ cha nartakīm |
dīpayedaviśeṣeṇa | tadabhāvepi dīpyate || 11 ||
ahaṅkāraṁ dhiyaṁ sākṣī | viṣayānapi bhāsayet |
ahaṅkārādyabhāvepi | svayaṁ bhātyeva pūrvavat || 12 ||
nirantaraṁ bhāsamāne | kūṭasthe jñapti-rūpataḥ |
tadbhāsā bhāsamāneyaṃ | buddhirnṛtyatyanekadhā || 13 ||
ahaṅkāraḥ prabhuḥ sabhyāḥ | viṣayā nartakī matiḥ |
tālādi-dhārīṇyakṣāṇi | dīpaḥ sākṣyavabhāsakaḥ || 14 ||
svasthāna-saṁsthito dīpaḥ | sarvato bhāsayed yathā |
sthirasthāyī tathā sākṣī | bahirantaḥ prakāśayet || 15 ||
bahirantarvibhāgoyaṁ | dehāpekṣo na sākṣiṇi |
viṣayā bāhyadeśasthāḥ | dehasyāntarahaṅkṛtiḥ || 16 ||

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