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O que é Vedanta? - Gloria Arieira


O que é Vedanta?
Gloria Arieira

O homem é consciente de si mesmo, de um ser que é incompleto. Essa auto-apreciação é peculiar ao homem, visto que, sendo consciente, ele é também consciente das próprias imperfeições, o que dá origem ao descontentamento. Assim sendo, a vida de um dado indivíduo é governada por desejos que estabelecem o fato dele não estar à vontade consigo mesmo.

Desejos diferem de indivíduo para indivíduo. Não existem duas pessoas com o mesmo grupo de desejos. Cada um cultiva desejos particulares ao ser influenciado pelo meio cultural e pelas condições de vida em que nasce e se desenvolve.

Desejos diferem não apenas de um indivíduo para outro, mas vão se modificando constantemente enquanto vivemos, segundo fatores como idade e posição social. Aquilo que desejamos hoje não é o mesmo que desejávamos na infância.

Do ponto de vista da estimação do valor dos objetos, o universo inteiro pode ser dividido em três categorias:

1) objetos do meu gosto;

2) objetos de aversão;

3) objetos aos quais sou indiferente.

Dentro dessas três categorias, os objetos se permutam. Quero me divorciar da pessoa com quem casei, de quem gostava. Ela é hoje objeto de desgosto. Ou ainda, antes eu era indiferente ao futebol, mas hoje em dia o acompanho com grande interesse. Assim sendo, essas categorias nunca são constantes. Nossos objetos individuais e cultivados são vários e estão sempre a se modificar.

Porém, existe um desejo que é constante e universal: o desejo de ser feliz. Esse não é um desejo cultivado. Não o adquiri numa determinada hora e lugar. É um desejo fundamental, inato a todos. Assim como nasci com fome, sede e outras necessidades, nunca me ensinaram a querer felicidade. Desde que nasci, busco felicidade e contentamento. Esse desejo não é, portanto, sujeito à escolha. É natural. Nem tampouco à modificação. Não posso rejeitá-lo.

De fato, esse é o desejo fonte, causa de todos os desejos secundários e gerais. Através de desejos individuais, me esforço em satisfazer esse desejo inato e fundamental de ser feliz.

Além disso, meu desejo não é meramente o de ser feliz. Quero felicidade total. Não quero nada menos que felicidade absoluta. Estou cansado de ser feliz apenas de vez em quando e em diferentes graus. O que desejo realmente é felicidade absoluta. Quero ser pleno e completo. Quero ser ilimitado.

Aquele que é abençoado com um pensamento claro e maduro certamente reconhecerá que qualquer dos fins alcançados pela realização de desejos secundários não se transformará nunca no resultado que ambicionamos - felicidade absoluta. Não importa quanto adquira em vida, me julgo insuficiente. O problema não está no que quero, mas no querer. Os objetos de desejo surgem e desaparecem, permanecendo somente uma constante música de fundo em minha vida, o fato de que "eu quero... eu quero...".

Tendo reconhecido esse problema, será que posso acreditar sem receio na possibilidade de tal coisa como felicidade plena? Não é isso meramente um sonho de um livro de estórias para crianças ("e eles viveram felizes para sempre")? Sou eu um idealista imprático ao considerar tal possibilidade?

Não. Não é uma mente imatura que procura, mas uma pessoa sensível e capaz de apreciar que esse desejo não é sujeito à escolha, mas é fundamental. Não posso rejeitar o desejo de ser completo, visto que não o escolhi. Tampouco posso negar que a felicidade adquirida na realização dos incontáveis desejos individuais é fugaz, e que me encontro sempre incompleto. Somente um indivíduo prático ousa perguntar: "onde se encontra a felicidade?". Prático porque dirige a sua atenção para a causa do problema. Aqueles que sem entender o problema vão por aí à procura de plenitude na esfera dos desejos individuais ainda estão "procurando no escuro". Aquele que realmente procura é diferente de todos os outros, visto que tenta satisfazer um desejo único capaz de destruir todos os outros desejos. Somente quem reconhece esse problema fundamental é digno de ser chamado mumukshu (1) , pois para ele somente esta busca é válida e significativa.

Se o desejo de ser feliz e ilimitado não é sujeito à escolha e é natural e universal, sem dúvida que não é sem sentido. Os meios de satisfazer os desejos naturais, como fome e sede, são necessariamente providos pela natureza. Assim sendo, tem que haver um meio de satisfazer o mais fundamental dos desejos. E, portanto, sendo esse o mais fundamental dos problemas de minha vida, pede um inquérito adequado.

Quanto mais se vive uma vida consciente, mais o desejo fundamental de ser completo se torna difícil de ser ignorado. E, até que se encontre uma solução para esse problema, não haverá tranqüilidade. O método pelo qual esse inquérito se efetua é chamado Vedanta.


Vedanta, um meio de conhecimento

Na parte final de cada um dos quatro Vedas (2) encontram-se as Upanishads. A estas é dado a designação geral de Vedanta. A palavra se deriva de vedanam antah, que significa o final dos Vedas. Outra designação dada às Upanishads, geralmente usada e que carrega uma significação importante, é Sruti, que significa aquilo que é ouvido. Aqui podemos apreciar que as Upanishads não são um conhecimento teórico contido em livros, mas um ensinamento que deve ser ouvido.

Vedanta não é um sistema filosófico. Tampouco religião. Vedanta é uma tradição de ensinamento transmitido de mestre a discípulo num fluxo perene desde tempos imemoriais. Assim como não podemos dizer o que veio primeiro, se a árvore ou a semente, é impossível delinear um começo para esse ensinamento.

Rotular Vedanta de "escola de filosofia" ou qualquer tipo de "ismo" é um grande erro da parte daqueles que não se expuseram devidamente ao método de ensino autêntico e tradicional. Nas Upanishads é dito que esse conhecimento deve ser recebido de um Srotrya Brahmanistha, um mestre não somente versado nos Shástras (3) , mas também uma personificação viva do próprio conhecimento. Somente aquele que encontra um tal mestre pode apreciar a singularidade e eficiência do ensinamento vedântico.

Assim sendo, Vedanta é uma tradição de conhecimento. Conhecimento de quê? Temos ouvido explicações do tipo: "de um caminho para a verdade", "conhecimento do ser", ou "conhecimento da Verdade". Aceitamos todas, porém, o mais acertado será obter da própria tradição o significado do Vedanta. Jiva Brahma Aikyam é a essência do ensinamento, o que significa a identidade que se obtém entre o indivíduo, aquele que busca, e o Fim, o Ser Ilimitado. O ensinamento vedântico é um desdobramento claro e profundo dessa verdade essencial e única.

Outro aspecto importante do Vedanta é o método singular do ensinamento. Vedanta é referido como escola shabda pramánam, ou palavras que são um meio de conhecimento. Por intermédio de um hábil manipular de certas palavras e frases significativas, o mestre leva o estudante a reconhecer a verdade sobre Si Mesmo. Isso é entendido melhor por meio de uma ilustração: um certo indivíduo, pensando ter perdido suas chaves, não percebe tê-las em seu bolso, e sai à procura delas como um louco. Seu filho menor, cujas mãozinhas já reviraram bem aqueles bolsos, sabe exatamente onde estão as chaves, e diz: "Papai, olhe em seu bolso. As chaves estão com você". Resmungando, o pai verifica em seus bolsos e descobre então que as chaves estavam consigo o tempo todo.

Na verdade, as chaves não estavam perdidas, mas de algum modo não as havia notado, e a sensação de perda fez com que as procurasse em outro lugar. Mesmo depois de muita procura, ele não as acharia, pois eram algo já adquirido. Ele as tinha consigo todo o tempo. O conhecimento errôneo "minhas chaves estão perdidas" precisava ser substituído pelo conhecimento correto "as chaves estão comigo". O conhecimento transmitido por meio de uma frase dita por alguém bem informado libertou o homem de sua sensação de perda. Ao ouvir palavras adequadas e na hora certa, ele compreendeu ser o "possuidor das chaves". Exatamente o que almejava ser. As palavras foram o meio pelo qual ele se livrou de sua ignorância.

Do mesmo modo, em Vedanta, as palavras são o meio de conhecimento pelo qual o mestre indica uma verdade já existente. A identidade existente entre o ser individual e o Absoluto é expressa pela frase "tu és Aquilo". Não se diz "tu te tornarás Aquilo (mais tarde)". Visto que essa verdade é algo já existente, não será adquirida através de uma ação, mas sim por conhecimento. E para conhecer algo é necessário um meio de conhecimento. Vedanta é o meio de conhecimento que, por ser em forma de palavras, necessita de um mestre. Um mestre de Vedanta é aquele que dissipa a escuridão, a ignorância que impede alguém de conhecer a si mesmo.

Vedanta é, então, um meio de conhecimento que proporciona o conhecimento do Ser. Outros meios de conhecimento à nossa disposição não o possibilitam, e, portanto, esse método de conhecimento em particular se faz necessário. Assim como nossos olhos são os meios de conhecimento para que formas e cores sejam conhecidas, Vedanta é o meio para o conhecimento do Ser.

Om.

(1) Mumukshu: aquele que busca liberdade e felicidade.
(2) Vedas: antigos livros hindus de conhecimento.
(3) Shástras: denominação geral do conhecimento obtido nos Vedas.

Fonte: Informativo Vidyāmandīr de março de 1992
Centro de Estudos de Vedanta e Sânscrito
www.vidyamandir.org.br

 

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